quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Do ser plural ao singular: a ressignificação de uma trajetória

Introdução

O texto autobiográfico, literário ou não, tem a função de resgatar o passado e cristalizá-lo no tempo presente, por alguma razão. O narrador, geralmente em 1ª pessoa, expõe as experiências vividas, evidentemente, utilizando o filtro do ser que é no momento do relato e não do ser que foi. Não são poucos os exemplos de obras que têm a memória como estro da criação, seja na área da literatura, do jornalismo ou do universo artístico em geral. Faremos, neste ensaio, algumas considerações sobre esse gênero, que se afirmou nos anos 70, e centralizaremos nossa análise no livro "Entre o poder e a madrugada", de Augusto César Benevides, que fez (e faz) história na publicidade e no jornalismo cearenses.

Buscaremos, através do relato memorialístico de suas experiências, entender a dinâmica da Fortaleza dos anos 70, com suas modificações no cenário econômico e social; no setor artístico, na movimentação da noite; nas áreas do jornalismo, da publicidade e no próprio comportamento da juventude, especialmente do autobiógrafo, que se revela dividido entre a jocosidade sedutora da ‘madrugada’ e a seriedade comprometedora do ‘poder’; sua decisão implicará a ressignificação de sua trajetória.

1 A narrativa memorialista

A narrativa memorialista toma impulso, nos anos de 1970, com o romance-reportagem, uma tendência pós-moderna que se alicerça na transdiscursividade e legitima o namoro do jornalismo com a literatura. Muitas obras demarcam os limites laterais do biografismo, com ambos mantendo fronteiras às vezes difíceis de serem demarcadas. Segundo Walnice N. Galvão (2004), o memorialismo, há tempos praticado no país, deu um salto de qualidade ao surgir a obra de Pedro Nava: “com uma capacidade invejável de reconstituir os ambientes de sua ancestralidade até várias gerações, e criando com liberdade o que não podia propriamente reconstituir, Pedro Nava acaba por fazer também um pouco de história imaginária, ou do imaginário. Ergue-se ante nossos olhos o passado de Minas”. A narrativa biográfica tem, pois, esse mérito de reconstituir, utilizando a trajetória de um personagem real, a trajetória de uma geração, a história de uma época e de um espaço.

Assim ocorreu com Pedro Nava, que juntou imaginação e memória nos relatos de suas experiências; com Marcelo Rubens Paiva, em seu Feliz ano velho, livro que conta o acidente que o deixou paraplégico e os dias que o sucederam, entre outros que, ao modo de Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e Raquel de Queiroz, transfiguraram para a literatura episódios de suas histórias. No Ceará, destaca-se Milton Dias com suas crônicas de memórias. Entre artistas e jornalistas também é comum encontrarem-se relatos acerca de suas vivências, que acabam por constituir, muitas vezes, recortes de um período marcante de suas vidas e do espaço-tempo em que tudo foi vivenciado.

Essa opção por narrar-se, ou seja, transformar-se em personagem, é curiosa e suscita uma reflexão sobre o significado da experiência vivida tanto para quem a expõe, no momento em que a expõe, pois já não é a mesma pessoa que viveu os fatos, como para o leitor. Marta Campos (1992 pp.28-9) faz algumas considerações a esse respeito: “Quando um autobiógrafo confere um significado a um tempo passado, ele certamente optou por um dos muitos significados que o acontecimento pode ter tido ou talvez tenha conferido ao fato um significado totalmente novo, que ele só adquiriu muito tempo depois. Este significado, por sua vez, revela muito mais sobre a situação do autobiógrafo no momento da escritura do que sobre o homem à época do acontecimento”. De fato, mudanças se operam na pessoa, no decorrer do tempo, e a própria visão sobre o passado se modifica, pois que o próprio autobiógrafo pode reinterpretar, de formas diferenciadas, as experiências passadas. Tanto é verdade, que é comum declararem: “há coisas que hoje eu não escreveria”.

2 A ressignificação de uma trajetória

Numa linha jornalística, sem pretensões literárias, o publicitário e jornalista, Augusto César Benevides, lançou, em 2001, o livro Entre o poder e a madrugada, com relatos leves, bem humorados, irônicos; por vezes pulsantes e extremamente sérios. Digo sérios, porque se entrevê a autenticidade das declarações, a disposição para ultrapassar o mero relato. Não se lê apenas as histórias do homem, mas o homem em sua dimensão humana, seu caráter, sua sinceridade. A vida do menino peralta que se fez adulto sob os holofotes de uma sociedade (que nem sempre perdoava os ‘rebeldes’) é delineada em suas várias fases, descortinando, por extensão, a latência da juventude dos anos 60 e 70 na nossa capital, com seu espírito de aventura e desejo de transcendência. O livro adquire, assim, um caráter também documental, pois, embora se perceba, como se disse, laivos de ironia e humor, fica evidente o compromisso com a verdade.

Buscando ressignificar sua trajetória, ou dela apropriar-se pela memória, Benevides desdobra suas faces a partir das fotografias da capa, em que aparecem duas metades do seu rosto: em uma delas, a seriedade do homem é toda ‘poder’; na outra, o sorriso parece evocar a lua de suas serenatas, e o homem-menino é o boêmio que a todos encantava com sua voz e seu poder de sedução. Assim, o título da obra harmoniza os dois ‘mundos’ pelos quais transitou e, nas narrativas, essa ‘dualidade’ se traduz no equilíbrio de um ser plural que soube viver, sonhar, lutar e realizar, com o tempero da ousadia, sem suor visível, mas com um espírito visionário impressionante. Os percalços são descritos com tanto humor e coragem, que o leitor se deleita com os contornos de “céus azuis e dunas brancas”, mediante o pacto feito por ele com a alegria, sem desconhecer que “em cada aurora se esconde a face ansiosa da vida”.

A madrugada o seduzia, com suas belas mulheres, vinhos e risadas de amigos. O poder o arrastava pelas madeixas cacheadas. O sorriso, entretanto, de um ou outro lado, convencia a todos que era uma pessoa absolutamente verdadeira em qualquer dos lados. Dos clubes para as redações de jornais, nasceu o executivo respeitado, carismático, dono de um perfil austero que negava o moleque que andava pelos telhados e fazia serenatas nas janelas das namoradas. O que garantiu, entretanto, sua singularidade, e essa é uma visão paradoxal, foi exatamente a fusão do homem no menino, do peralta no austero. Mesmo sem a organização cronológica na seqüência dos relatos, vê-se que mudaram os referenciais, as conquistas, não a sua essência de pessoa feliz, apaixonada pela vida, por sua terra e sua gente.

Dono de um poder de observação fantástico e uma memória prodigiosa, ele resgata episódios cômicos, momentos graves, recordações de viagens e presepadas, numa linguagem simples e escorreita, num ritmo de conversa, como se estivesse à vontade, entre amigos, revivendo passagens da sua história. Essa espontaneidade, aliada à sua capacidade imaginativa, não perde o tom nas revelações de bastidores do poder, nas confissões mais íntimas, nem nos momentos de mea-culpa, em que assume os excessos da juventude, as omissões de afeto, sem, entretanto, qualquer travo de amargura ou arrependimento. A voz do homem parece a do menino que ele não deixou de ser: “...numa noite, em um sonho, um anjo me avisou que eu havia controlado as minhas emoções, tinha sido paciente para esperar nos bastidores, o papel que a vida me havia dado para desempenhá-lo no palco da vida /.../ Só não esperei para descobrir que a alegria é a qualidade mais vibrante e mais próxima de Deus” (p.16)

3 A história de uma época, de uma geração, de uma cidade

Ao falar de sua vida, Benevides fala, como já referimos, de toda uma geração de jovens que freqüentavam tertúlias e bailes de carnaval, praias ensolaradas e boates, a Casa do Pereira e os clubes: Iate, Líbano, Maguary, Diários e Náutico nos anos 70, alguns nem mais existem hoje. Conta, na transversal, fatos inusitados que marcaram o então incipiente mundo do jornalismo, da publicidade e da televisão cearenses, os nomes lançados na época em todos os setores. Mostra o início do Pessoal do Ceará, um movimento que enveredou pelo sul maravilha, mas não desprendeu as raízes da terra cearense, onde se perpetuou como um marco na história da música.

O surgimento de novas lideranças políticas está bem assinalado, bem como os empreendimentos marcantes, que mudaram a dinâmica da cidade. A partir da construção do Center Um, no início dos anos 70, cujo lançamento de inauguração ficou sob sua responsabilidade, ocorreu a descentralização do comércio fortalezense que, até então, restringia-se ao centro, especialmente à Praça do Ferreira e à Rua Barão do Rio Branco, com o chamado ‘quarteirão do sucesso’, e às ruas Major Facundo e Floriano Peixoto, onde localizavam-se as lojas de maior expressão, e os cinemas. Qualquer compra que se pretendesse fazer, teria que ser feita no Centro, onde as pessoas se submetiam inevitavelmente ao calor e aos já atentos "batedores de carteira". O primeiro passo para a descentralização foi o Center Um, que oferecia tudo num só lugar: lojas, lanchonetes, supermercado, cinema e estacionamento, dando à população o conforto de uma escolha fora da aglomeração do Centro. As lojas proliferaram pelos bairros, e Fortaleza aderiu às ‘catedrais do consumo’ já existentes em São Paulo, Porto Alegre e Recife: eram os Shoppings Centers que disseminariam o desejo de consumo, conjugando conforto, comodidade e a sonhada segurança.

É interessante observar que, nesse momento, começa, de forma bastante ousada, sua história na publicidade. Responsável pelo lançamento do primeiro Shopping Center cearense, Benevides resolveu trazer um elefante para a cidade, símbolo do Jumbo, supermercado âncora do empreendimento, e convidou o cantor Ednardo, do qual era produtor, para compor o jingle da campanha, cuja letra traduz bem o significado do produto:

"Depois que derrubaram
a Coluna da Hora
depois que derrubaram o Abrigo Central
O centro da cidade mudou pra outro local
Lá tem ar pra respirar(numa referencia ao ar cindicionado e
o calor do centro),
Tem coisas lindas pra olhar
Pois o centro agora é o Center Um".

Embora celebre a descentralização do comércio com o surgimento do primeiro Shopping, nota-se um lamento pelo abando do Centro da cidade, onde, segundo ele, faziam-se grandes promoções nas lojas, com bandas tocando na porta, desfiles, enfim, coisas que davam certo, porque atraíam multidões, sem o apelo desmedido da mídia atual. Tudo era planejado, pensado e executado pelos publicitários e suas equipes, entre os quais destacava-se o Tarcísio Tavares.

Com efeito, a memória de Fortaleza é constantemente evocada, de modo saudosista, nas referências ao Centro: Praça do Carmo, Cine Art, Assistência Municipal (hoje Hospital José Frota), Praça do Ferreira, Rua Assumção, Av. Barão do Rio Branco, Faculdade de Direito, União dos Moços Católicos, a LOBRAS, primeira loja de escada rolante, cenários de sua infância e adolescência – onde ele aprendeu “como Gulliver, a não andar como gigante entre pigmeus”.

Também, pela sua voz, sabemos de artistas que despontaram e se afirmaram, na época, e da descoberta do Ceará por muitos famosos. A vinda de muitos deles, inclusive, dava-se em função de campanhas publicitárias. Quando os clubes elegantes estavam começando a perder o encanto, as diretorias passaram a trazer artistas para shows à meia-noite. Só com esse artifício os clubes voltavam a ficar lotados. Aí surgiram as primeiras boates: Preto e Branco (no Clube Líbano), Meia Noite (no Othon Palace, antes Imperial), Barbarella, Senzala (perto do antigo aeroporto). Nesse período, também, começavam a acontecer grandes shows, incrementavam-se os jornais e as colunas socias.

Quando conta sua experiência como diretor de TV, ele registra o momento em que o monopólio da Rede Globo foi abalado pela Rede Manchete, com a ousadia dos Bloch de enveredar por um território até então exclusivo dos Marinhos: as novelas. Comenta, com propriedade, que não decepcionaram o público e que muitas delas ficaram na história da televisão brasileira: A Marquesa de Santos, Dona Beija, Kananga do Japão, Pantanal, entre outras. À frente da Emissora, no Ceará, Benevides colocou no ar também uma programação com ‘cor local’, no intuito perene de valorizar sua terra. Como já dissemos, as mudanças no setor comercial já ocorriam, e o turismo começava a incrementar-se. A Rede Globo, na tentativa de neutralizar a Bloch, gravou uma novela aqui, mas, com isso, apenas atraiu mais atenção para as nossas praias. O governo, por sua vez, passou a publicar anúncios, com as próprias modelos que estavam a trabalho, em revistas de circulação nacional. Enquanto isso, a TV Manchete cobria tudo e mandava matérias para o Rio de Janeiro, abrindo espaço nacional para políticos e artistas locais. Pode-se dizer que esse período, com toda esse investimento em mídia publicitária, foi definitivo para a projeção do nosso estado lá fora. Mas isso tudo não aconteceu da noite para o dia.

O setor publicitário e, claro, o comercial, foi, sem dúvida, alavancado pela estratégia de trazer artistas e modelos ao Ceará. A Rede Manchete, que era parte do Grupo Bloch, tinha na editora seu faturamento mais expressivo. As revistas: Manchete, Desfile, Tendência, Fatos & Fotos,Geográfica Universal, Amiga, todas de circulação nacional, eram, na época, representadas por Augusto César Benevides, então Superintendente Regional do Grupo. Com ajuda do governo do estado, o grupo trazia mensalmente uma personalidade do meio artístico para Fortaleza: Luiza Brunnet, Xuxa, Cristiana Oliveira, Rose di Primo e muitas outras que faziam sucesso no Brasil inteiro. Segundo conta o livro, elas vinham, ficavam de 10 a 15 dias em Fortaleza e eram fotografadas para capas e reportagens, usando peças da nossa moda: chapéus de palha, rendas e labirintos, tendo como cenário o nosso litoral. Em contrapartida, lançaram-se artistas cearenses no eixo Rio/São Paulo, que passou a descobrir os encantos do Ceará, das praias cearenses. A partir de então, a visão que se tinha da nossa terra e da nossa gente se modificou, e as gozações em torno da nossa cultura, do nosso léxico e do nosso sotaque foram amenizadas, afinal, ‘passaram a saber’ que éramos moradores de uma terra charmosa, cheia de seduções e não apenas palco de ‘nordestinos xucros e esfomeados’.
O que mais chama atenção nesses relatos é o vigor da juventude dos anos 70 e 80, que, embora fosse boêmia e festeira, assumia sua profissão e queria fazer acontecer, mantinha-se em movimento. Parecia existir, no afã de descobertas e quebras de tabus, uma preocupação em realizar, todos conscientes de que estavam trabalhando para as futuras gerações. Foram os jogos de marketing, há pouco citados, que atraíram olhos para a nossa terra e fizeram com que nossos empresários passassem a anunciar nas revistas da Bloch e de outras editoras. Foi, também, o maior momento da moda cearense, haja vista o sucesso de vendas no setor de confecções, que ganhou várias fábricas de jeans; a Maraponga virou um pólo de moda do Brasil, confirmando nossa excelência no setor têxtil. A jornalista Rozane Quezado, que ajudou na organização do livro e escreveu o prefácio, diz que a geração ‘gutista’ marcou época e “não apenas do ponto de vista da responsabilidade profissional – era uma geração de boas idéias e ricas produções -, mas pelo sentimento de liberdade, recheada de ingredientes da boa malandragem, do companheirismo, da vida em festa”.
Fazendo uma avaliação do momento atual, a jornalista diz que livro deveria ser lido por outras gerações, “principalmente pela atual que, em sua maioria, está contabilizando suas alegrias e prazeres nos ambientes de interação pela Internet, onde a sociabilidade virtual tomou o lugar do contato pessoal, do abraço entre amigos e das brincadeiras de grupos que, ao meu ver, a tecnologia não encontrou substituto”.

O registro mais importante, que marca o caráter dos jovens da época, é o do amor à terra, o desejo de conservação do patrimônio, da memória da cidade. O cantor Ednardo, revela Benevides, chorou muito ao seu lado quando viu as ruínas do Castelo do Plácido, na Santos Dumont (onde hoje fica a CEART), derrubado criminosamente para a construção de um supermercado que nunca surgiu. A partir dali, compôs uma de suas mais belas letras: "Longarinas"

"E o mar engolindo lindo,Antiga praia de iracemaE os olhos verdes da meninaLendo o meu mais novo poemaE a lua viu desconfiadaA noiva do sol com maisUm supermercadoEra uma vez meu casteloEntre mangueirasE jasmins florados.E o mar engolindo lindo,E o mal engolindo rindo.Beira-mar, beira-mar..."

Esse espírito de construção de uma identidade da terra pátria, bem como a disposição para projetar-se no sudeste do país se traduziram nos desafios enfrentados por nossos cantores e compositores, que foram para o Rio de Janeiro para voltar "em video tapes e revistas super coloridas"("Carneiro", Ednado). Não apenas projetos musicais se realizaram, mas de arquitetos, publicitários, cineastas, jornalistas, atores e diretores de teatro (Aderbal Junior), humoristas(Chico Anísio e Renato Aragão), médicos e tantos outros profissionais. Quase todos vindos de famílias simples, “sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindos do interior”, como cantou Belchior.

O panorama histórico dos tempos da ditadura não falta à sua reflexão: “A década de 70 ficou em nossa memória e na cabeça de muitos como uma época de transformações e mudanças no sistema internacional com forte influência no Brasil. Nos primeiros anos, ou mais precisamente, até o final de 1973, era possível imaginar que continuaríamos sob o domínio das tendências internacionais herdadas dos anos 60. Nessa época, o MDB saía de uma postura de quase clandestinidade imposta pelo regime militar para a avalanche eleitoral de 1974, quando elegeu 16 senadores e uma aguerrida bancada de deputados. Essa derrota fez o governo militar instituir a lei Falcão, que impedia o acesso de candidatos ao microfone das emissoras de rádio e televisão” (p.20). Em outras passagens, delineiam-se referências à Ditadura sob a ótica do humor, com o qual ele soube driblar a censura:

Há, ainda, uma memória fotográfica que ilustra os momentos marcantes de sua vida e, extensivamente, da televisão cearense. Benevides mantém humor, fina ironia e leveza aos seus relatos, transparecendo seu idealismo e sua força realizadora. Nada sobrenatural, entretanto. No discurso risível da obra, percebe-se claramente que determinação, ousadia sorte, e discernimento, sobretudo seu amor à vida, foram os ingredientes fundamentais para sua realização como profissional e como homem, como ser humano capaz de mudar o curso da sua própria história e fazer do plural o singular, ou seja, de abrir-se para todas as possibilidades, mas, com discernimento, fazer suas opções. Seu segredo é declarado: “Eu me apaixonei pela vida desde que abri os olhos. E fui me apaixonando cada vez mais, à medida que abria a mente para o mundo”. Essa paixão se amplia, quando ele se percebe cidadão do mundo, mas absolutamente ligado e comprometido com o seu estado, com sua cidade, cujas reminiscências são, também, em determinado tempo, as suas.

Considerações finais

É abrindo o baú da memória que se reconstrói o passado, cujo resgate não ocorre à toa. Busca-se recuperar o tempo transcorrido e cristalizá-lo em palavras, registrá-lo para a ‘posteridade’, deixando, assim, a marca de uma tradição. A palavra é a forma de eternizar-se e eternizar a história de uma sociedade num recorte de tempo que se julga importante. Sem descartar essa função, pode-se, ainda, dizer que a narrativa memorialista busca também, construir um alter-ego, no caso da obra em foco, de um rapaz que parou de brincar com a vida na hora certa e assumiu o seu papel de homem atento às mudanças sociais, econômicas, políticas e, até, existenciais. Desse modo, cumpre uma função que, de acordo com Foucault (1995), os textos autobiográficos, na cultura greco-romana, desempenhavam: ‘aconselhar para prevenir fatos semelhantes’, o que, no contexto, podemos interpretar como uma forma de mostrar ao ‘outro’ o que pode ser feito e o que não deve ser feito para sair do vento da ‘madrugada’ e escalar os degraus do ‘poder’. Tome-se a palavra ‘poder’ em todos os sentidos possíveis, inclusive no de ser capaz de transpor limitações e viver o inimaginável, sem corromper-se.

É traçando esse retrato de sua cidade que Augusto César Benevides constrói o seu próprio. Seja qual for a intenção consciente ou inconsciente, a função de utilizar a palavra como arma de construção e/ou desconstrução de uma imagem, de um tempo e de um lugar, se cumpre na obra Entre o poder e a madrugada. Além de ressignificar a trajetória do menino peralta que virou o adolescente rebelde e renasceu no homem sério, o relato mostra os dribles de um espírito irreverente e boêmio, mas, ao mesmo tempo, centrado e visionário, que soube ousar e marcar época no jornalismo e na publicidade local. Ligada à história do dele, como mostramos, está a história da juventude dos anos 70, freqüentadora de clubes e mesas de bar. Dessa forma, a cidade de Fortaleza torna-se cenário e personagem também, o que dá ao livro um caráter não apenas confessional, mas também documental.


Referências

BENEVIDES, Augusto César. Entre o poder e a madrugada. Fortaleza: RBS, 2001.

CAMPOS, Marta. O desejo e a morte nas memórias de Pedro Nava. Fortaleza: Edições UFC, 1992.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1995.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “A voga do biografismo nativo” http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000300026&script=sci_arttext . Acesso em 14/10/2008

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

A VIAGEM FANTÁSTICA

Escrever é uma arte e, como toda arte, requer perícia. No caso da literatura, pode-se dizer que o texto é ‘tecido’ pela arte de engolir e ‘desengolir’ palavras, numa atitude consciente da criação. Lourdinha Leite Barbosa, em seu livro de contos “A arte de engolir palavras” já anuncia esse processo a partir do título da obra, que Vicência Jaguaribe bem marcou como uma reflexão metalingüística. O conto homônimo é uma metáfora desse exercício, sem dúvida.

Embora se saiba que a inventividade não decorra de técnicas, mas do poder de captar, da imaginação, da observação ou da memória, a matéria sensível que dá ‘vida’ aos enredos, percebe-se, nos contos de Lourdinha, o apuro formal de quem bem domina a técnica do conto. Sua frase enxuta e seus enredos concisos mostram um trabalho de linguagem cuidadoso, elaborado com precisão e consciência. A teoria literária, como as tantas teorias do texto, se diluem no uso de recursos como a intertextualidade, o efeito fantástico e a ambigüidade. Seus textos não subestimam o leitor, ao contrário, convidam-no ao mergulho, à prospecção, à construção da lógica (ou da subversão dela) que subjaz nas entrelinhas.

O Fantástico, gênero que se estabelece a partir de um acontecimento não explicável pelas leis da razão, está presente em pelo menos seis das narrativas do livro. Destaca-se a sutileza com que a autora consegue construir o clima extranatural, de forma tão harmoniosa, ao trabalhar um tema tradicional como ‘o duplo’, no conto “A viagem” (p.32).

É este um dos mais antigos temas explorados pela literatura, tendo aparecido mais notoriamente no século XIX, quando vieram a lume as produções de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Dostoievski. A sua origem, no entanto, remonta à Antigüidade Clássica, pois, como afirma Clément Rosset (1976:61), “os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas de Plauto”. O tema ultrapassa a expressão literária, estendendo-se, ainda, à pintura e à música.

O desdobramento do eu que, na realidade, vem possibilitar o encontro desse eu consigo mesmo, resulta, geralmente, de um conflito existencial que leva o sujeito a buscar a sua verdadeira essência. Clément Rosset (1976) afirma que a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo” (p. 77), ansiada pelo indivíduo em conflito, só é possível através da aniquilação do duplo. Já na literatura romântica, conforme assinala o filósofo, ocorre o contrário, pois “a perda do duplo, do reflexo, da sombra não é [...] libertação, mas efeito maléfico” (p. 78). A destruição do duplo implica a destruição do eu. No seu ponto de vista, inclusive, o duplo não passa de uma ilusão: “Quem repete não diz nada, quer dizer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dispensar qualquer imagem: se não me encontro em mim mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. É preciso então que eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo que não é nada (ROSSET, 1976: 83-4).

A narrativa do conto “A viagem”, de Lourdinha, não dá nenhuma pista sobre a moça, que não tem nome nem idade ou qualquer característica que faça o leitor criar uma imagem. Sua aparição dá-se já quase como um ser etéreo, que vai ao encontro do seu destino. Seu? “Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera descobrir aonde ele ia e com quem”. Logo ela se apercebe que “varou a noite sem saber o motivo e o destino da viagem” e questiona se realmente estaria ali por acaso.

Sem entender , após dar a senha ao ‘homem alto e magro’ do guichê, recebe o tíquete e um livro de capa azul sem qualquer inscrição. Também sem autor e com um título em língua desconhecida, o livro traz textos em língua inteligível e desenhos estranhos: “um ovo, contendo uma figura metade macho, metade fêmea, sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos, e embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Uma seta feita à mão, apontava para um deles: um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em certos pontos”. O mistério se ‘concretiza’ e o significado da senha – Hâdi – bem como do símbolo indicado pela seta, causam certa inquietação no leitor. A personagem, entretanto, limita-se a tentar decifrar o símbolo e a incomodar-se com o vazio na estação, no restaurante e no próprio trem. Só no vagão indicado no tíquete há pessoas.

Assustada com a ausência de estrutura para a viagem – não há sequer camareiro ou funcionário no trem- ela, após percorrer todos os vagões e perceber que não há ninguém, retorna ao seu e se dirige às pessoas, demonstrando seu nervosismo na tentativa de compreender a situação. Os passageiros, na tranqüilidade dos que já tudo entenderam, respondem-na com certo desvelo, como a se darem conta de que ela precisa se acalmar: “Os dois velhinhos pareciam não ter entendido. A senhora de meia-idade procurou acalmá-la”; “contemporizou o homem de olhos azuis”; “Todos se entreolharam”; “A jovem de cinza acompanhou-a”. Solenes como os mortos, os passageiros do trem deslizam sobre os trilhos, em velocidade lenta e, sem saberem aonde ou a que vão, chegam a uma estação iluminada, sem indicações; ‘um prédio deserto de paredes completamente brancas e nuas’. A reação da moça, a única a, aparentemente, não saber o que se passa, é de ‘calafrio’, solidão, medo.

O Fantástico vai-se construindo no insólito dos acontecimentos, na ausência de explicações para a situação incomum, na inquietude do comportamento da personagem – assustada, nervosa -, no espaço sem identificação, híbrido como a morada dos mortos... A senha ‘Hâdi’ indicaria uma passagem para a morada de Hades? Perdida no labirinto da passagem entre a vida e a morte, ela decifrou o símbolo e lembrou dos jogos da palavra cruzada, de desenho idêntico... mas sua saída foi o sono, o entorpecimento da consciência até a chegada ao ‘fim da linha’. Não se sabe se esse sono se dá antes ou após a descida na estação iluminada. Não há notações temporais contínuas.

O leitor atento não hesita, sabe que o percurso no trem foi a preparação para a irrupção do insólito; de dentro do trem, ela enxerga seu próprio vulto a esperá-la na estação: “Aos poucos, foi divisando o prédio da estação e um vulto solitário de pé na plataforma. Ao acercar-se, faltou-lhe o ar e todo o seu corpo ficou paralisado pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma”. Embora a personagem esboce reação ante o sobrenatural, o Fantástico se estabelece de forma bastante sutil – moderna, pode-se dizer -, pois a morte não é tratada de forma maléfica, tampouco o vulto que aparece traz contornos de um fantasma; não na acepção do reaparecimento de uma alma penada, que volta à vida para causar assombro, mas da aparição de uma mulher que não sabe sua condição e mantém o seu antigo aspecto, longe das formas indefinidas e evanescentes (HOLANDA, 1986: 757), próprias do fantasma tradicional.

Como já se falou, procurando concretizar essa ilusão __ o duplo __, a literatura fantástica explora tanto a restituição quanto à aniquilação do eu. A linha mais tradicional segue a trilha da literatura romântica que, como citou Rosset, percebe na destruição do duplo a aniquilação do próprio eu. Já a moderna, concebe esse encontro como a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo”. Qual seria o caso do conto “A viagem? Ora, é exatamente a ambigüidade o princípio constitutivo do Fantástico nesse conto: estaria a personagem apenas sonhando e acordara? O conto, possivelmente carregado da preocupação existencial da autora, teria colocado na moça as inquietações humanas dos que se encontram pedidos de si e buscam reencontrar-se? Ou estaria ela mesmo morta, fazendo a viagem simbólica à ‘morada dos mortos’? O discurso não permite respostas e é, certamente, nessa incerteza que o Fantástico se consolida.

BIBLIOGRAFIA:


FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FURTADO, Filipe, A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980
JAGUARIBE, Vicência Mª Freitas. Sobre a arte de engolir palavras e suas outras artes. In: LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002 pp.77-95
LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002
ROSSET, Clément. O real e seu duplo., 1976
TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"Carnavalha ": Surrealismo e Carnavalização

“Carnavalha” é o 7º romance de Nilto Maciel, recém lançado pela editora Bestiário (Porto Alegre, 2007). O romance agrada o leitor a partir do trabalho gráfico apurado (o mesmo do livro anterior: a coletânea de contos “A leste da morte” (2006)) até a extensão dos capítulos, sempre curtos e nominados. A história se passa na cidade de Palma, no Ceará, espaço (imaginário) recorrente em livros anteriores, e o leitor fica suspenso no questionamento: a rotina foi modificada pela festa momina ou a cidade é um antro de loucos, que vivem o ‘carnaval’ permanentemente? Afinal, como diz o Zuza: “A cidade é cheia da fantasias. O Carnaval é o cotidiano” (p.147).

A narração faz desfilar uma galeria de personagens que surgem, desaparecem e ressurgem como num desfile de carnaval; o ritmo constante e denso dá a impressão da passagem ‘tumultuada’ de blocos carnavalescos, que é o que constitui, de certa forma, cada capítulo. O discurso do narrador, em 3ª pessoa, predominantemente no pretérito imperfeito do indicativo, um tempo que expressa um fato passado contínuo, coloca o leitor diante de acontecimentos passados, mas de incerta localização no tempo: tudo se passou e parece estar ainda se passando. A idéia de simultaneidade está presente, sobretudo, na quinta parte, quando os capítulos enfocam especialmente um personagem (ou um par), o que é reiterado pela alternância de vozes: o narrador fala e faz ecoar a voz dos personagens, por meio da mistura contínua dos discursos indireto e indireto livre.

Embora o Zuza apareça no início e no desfecho da narrativa, o enredo não tem personagem central – todos estão inseridos no mesmo enfoque delirante do narrador onisciente – a protagonista da obra é a própria vida. Os personagens aparecem invariavelmente submetidos a situações que transpõem a racionalidade, imersos num mundo surreal, que tem a sua própria lei: a do absurdo. Não há nenhum questionamento por parte deles sobre o delírio em que vivem; a transgressão da normalidade aparece como natural. Os acontecimentos que fazem o enredo estão, pois, libertos das exigências da lógica e da razão, vão além da consciência cotidiana e se expressam através do desvario: “Montado num dromedário, Aluísio passeava pelas ruas de Palma. Seguiam-nos outros dromendários, cavalgados por seus amigos de Brasília. Iam pela Avenida Dom Bosco, no rumo da matriz /.../ Súbito os animais se punham a correr pelas ruas, em desabalada carreira. “Sou Lawrence da Arábia. Vocês não me acham parecido com Omar Sharif?”. Aos gritos uma multidão de meninos corria atrás da caravana.” (p.125). De fato, exatamente como preceitua o manifesto surrealista, “Carnavalha” rejeita “a chamada ditadura da razão e os valores burgueses. Humor, sonho e contra-lógica são recursos a serem utilizados para libertar o homem da existência utilitária. Segundo a nova ordem, as idéias de bom gosto e decoro devem ser subvertidas”. Essa filiação não está apenas no conteúdo, mas na própria forma: percebe-se que “o impulso criativo artístico se dá através do fluxo de consciência despejado sobre a obra”. Há uma ‘avalanche’ de situações que se sucedem, literalmente regurgitadas pelo narrador, e nenhuma obedece à lógica referencial. Vejamos outra passagem, quando o sagrado e o profano se colocam lado a lado: “Foliões invadiam a igreja, escancarando as portas laterais e da frente. Fantasiados, de roupas coloridas, pintados e seminus, gritavam, cantavam e pulavam. Maroca leva as mãos à boca horrorizada:”Padre, padre, veja que profanação!”. Porém os fiéis se misturavam aos carnavalescos e se punham a dançar, pular e cantar /.../ E então o pároco, acolitado ainda por Alzira, surgia às suas costas, não mais de batina, porém vestido de uma capa preta, chifres enormes, um rabo a balouçar, língua de fora /.../ Encapetado, o padre buscava Maroca e a encontrava ao lado do altar. Agarrava-a por trás e fazia menção de violentá-la” (pp.100-101).

Na sexta parte, os fatos surreais são interrompidos, e o bêbado Zuza volta às atenções ao perturbar, com a inconveniência e a sinceridade dos ébrios, conterrâneos e visitantes que brincam o carnaval. Durante o tão esperado baile no balneário, seu corpo aparece boiando na piscina. No capítulo “As Cinzas”, simbólico porque marca o fim do carnaval e o fim também do carnavalesco Zuza, todos são interrogados pelo delegado Pedro Cabral. O romance termina com a descrição do baile e a fala do Zuza, em cima do palco: “canalha, carnalha, canaval, canavalha, carnavalha, carnavalma, carvalha, canavialha, carnavialma, bando de canalhas, macacos, cambada de farsantes” (p.173). A orquestra pára, as luzes apagam e sons conexos e desconexos ressoam na multidão. Como no capítulo anterior sabe-se que o Zuza morreu, supõe-se que tenha sido esse o seu momento final. Nenhuma elucidação do crime, entretanto, é dada ao leitor: suicídio? Assassinato? O romance termina. Além do imenso elenco de personagens, há uma infinidade de bichos e insetos que pululam o universo delirante de Palma: cachorros, dromedários, cavalos, onças, gatos, galinhas, baratas, aranhas, corujas, ratos, abelhas, todos nivelados ao homem na mesma aparente naturalização do irracional: “O gato miava, agigantava-se, fazia-se onça e saltava ao pescoço do estranho” (p.74) ”/.../ “Eu não entendo como pode um homem se entender tão bem com um cão e deixar de lado a cadela”. A da casa brincava: “Você não queria dizer a cadele?"Vicente se levantava e saía para a rua. Guiomar ia a seu encalço. A mulher corria à porta e se punha a imitar latidos" (p.78). /.../ “O cachorro se punha a latir e caminhava em direção à dona da casa, dentes à mostra. “Ou a senhora fica com ele, ou eu o mando morder as suas nádegas”” (p.85). Um mundo fantasioso se instaura e nada é o que aparenta ser. Muitos intertextos permeiam a voz do narrador e dos personagens. São passagens de obras ou referência à Bíblia sagrada, a Sheakespeare, Hamlet, Dante Alighieri, Cervantes, letras de música, à carta de Pero Vaz de Caminha: “Alguns homens traziam os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau. Entre eles, cinco ou seis moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas. Traziam suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que mais pareciam meninas” (p.75). Aliás, a Carta está em todo o capítulo “As cinzas”. O nome do delegado é Pedro Cabral e o escrivão, ao datilografar os depoimentos, mantém uma cópia (da Carta) ao lado e fica a repetir passagens. O delegado, ironicamente, vive consultando um “Livro de ditados” e a cada depoimento desfere um como uma verdade irrefutável.

Fora das fronteiras do Fantástico, gênero tão bem exercitado em obras anteriores do autor, “Carnavalha” é um romance ousado, subversivo da ordem e dos cânones tradicionais. O irônico se mistura ao trágico e ao cômico e cria um universo simbólico pleno de representações. Nilto Maciel demonstra total domínio do texto ficcional, autonomia e capacidade de brincar com as coisas sérias. Daí ser impossível ler “Carnavalha” e não referir, também, Bakhtin e sua teoria sobre a ‘carnavalização’ na obra literária. Embora na obra do Nilto o cômico esteja ligado ao trágico – há muito sofrimento, num desmascaramento das agruras da própria existência – nela o carnaval representa a festa dos loucos (festum stultorum) e predomina o realismo grotesco de que fala Bakhtin; há muitas imagens deformadas e exagero, há confusão e dissolução de identidades e a total liberdade de transgredir, inclusive a lógica. Entre o Surrealismo e a Carnavalização, Nilto Maciel escreveu um dos romances mais interessantes que li nos últimos tempos. Vale a pena conferir!

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Imaginação e memória no Romance "A Casa"

Material para o Vestibular UFC/2008


SOBRE A AUTORA:

Natércia Campos (1938-2004) - Cearense, filha de D. Maria José e do contista Moreira Campos.
1998 – Iluminuras – contos (Prêmio Nestlé de Literatura)
1998 - Por terra de Camões e Cervantes - Narrativas de viagens
1998 - A noite das fogueiras – Histórias maravilhosas
1999 - A casa – Romance (Prêmio Osmundo Pontes de Literatura)
2001 - Caminho das águas – Narrativas de viagens
(Além de contos publicados e Almanaques e Antologias)

FOCO NARRATIVO: 1a. pessoa

TIPO DE NARRADOR: Onisciente autodiegético (A casa)
Além de narradora, a Casa, é também protagonista da história. Com sua estrutura secular, constrói um relato memorialístico, em que rememora as gerações que acolheu, como testemunha de nascimentos, vidas e mortes sucedidas ao longo do tempo, bem como dos hábitos, costumes, crenças, superstições e segredos dessa gente. Ela mesma assinala que suas histórias diferem das histórias contadas pelos homens até porque o tempo deles é curto demais (p24). Eles passam, ela permanece à mercê do vento, seu confidente; é abandonada no período de seca, serve de pouso para animais, de abrigo para cangaceiros, é depredada por necessitados e por vândalos, até o dia em que fica dentro do contorno da bacia hidráulica, quando uma barragem é construída em torno do remanso. Leiamos os dois parágrafos finais do romance:
Muitos anos passaram (da visita de Eugênia, a historiadora). Em junho, na véspera do dia mais longo do ano, quem primeiro conseguiu avistar-me no espelho da águas foi Eugênia. Aconteceu quando a estrela Vésper surgiu brilhando no céu, na hora das Trindades em que os ventos tangem luz e sombra nos caminhos entre o céu e a terra. Os ventos, que agitam a superfície das águas,murmuram que é sinal de sorte para aquele que consegue vislumbrar a Casa Grande pousada nas águas profundas e sempre serenas. Sobrevoam estas águas, à minha procura, os ventos-cerceadores quando em travessia.
Próximo à Hora-Grande da meia-noite por brevíssimos instantes, as águas adormecem. Sonho então, sob a luz das estrelas, que sou uma fluida aquarela a espraiar-se refletida no cristal das águas. (p89)

SUPOSTAS GERAÇÕES
1a. geração – o bisavô de Bisneto
2a. geração – o avô de Bisneto
3a. geração – o Pai de Bisneto
4a. geração – Bisneto, as primas (a mãe de Custódio), Eugênia
5a. geração – Ana, Betariz e Elvira (filhas de Eugênia e Custório)
6a. geração – filhas de Ana (netas de Eugênia e Custódio)
7a. geração - netas de Ana (bisnetas de Eugênia e Custódio)
8a.geração – bisneta de Ana, que também se chama Eugênia – herdou a aquarela que sua trisavó (Eugênia, a mulher de Custódio) recebeu de seu padrinho (Bisneto). Ela é a 5a. de 5 gerações de mulheres.

ENREDO:

Ao rememorar os fatos acontecidos sob o seu teto, a Casa conta histórias que viu, ouviu, opina e faz juízo sobre as atitudes de seus moradores, mostrando o universo místico que perpassou o tempo e se manteve através das gerações que se sucederam: são provérbios e crenças cujo teor é transmitido como uma verdade que deve ser seguida. A invocação dos santos e as orações reiteram a atmosfera mítica que envolve as pessoas, inclusive a Casa, que tem o nome de Trindades, o Vento e a Morte, três personagens que atuam sob o efeito da antropomorfização.
A narrativa tem início com a Casa já se apresentando como narradora e dando detalhes ao leitor sobre a sua construção, o capricho do português (Francisco José Gonçalves Campos) que a executou com esmero, com matéria prima de primeira, dando-lhe a solidez que a fez resistir durante séculos. Fala sobre as reformas que sofreu na mão de outros donos, da falta de projeto e da péssima qualidade do material utilizado.

Em seguida, ela apresenta ao leitor Tia Alma, uma mulher devota das almas, que nunca se casou por conta do ar atoleimado que adquiriu ainda bebê quando tomou um vento. Ela criou sobrinhos e afilhados e morreu centenária. Quando, após anos, desenterram seu féretro, seu corpo estava intacto, mas imediatamente virou pó e foi levado pelo vento. Ficam as suas tranças, cujos cabelos permanecem vivos e foram guardados, durante muito tempo, como uma relíquia. (Só foram enterrados séculos depois, por Beatriz)

De outra geração, a narradora resgata a figura do Bisneto, o herdeiro da casa e do Solar. Mostra como despertou a homossexualidade dele sob as suas telhas, como a família sofreu e como o avô o levou, ainda menino, para a casa da serra, onde passou a viver, já que ele nunca seria o que os pais idealizavam. Em um dos seus retornos a Trindades, ele leva um pintor, seu “amigo”, que faz uma aquarela da Casa; juntos, eles escutam do velho passador de gado a história do “encoletado” (cujo relato é reproduzido com a voz do contador e não da Casa). É Bisneto quem leva para a Casa um espelho trazido de Veneza.

Paralela à história do Bisneto adulto, ela conta o sofrido parto da prima dele, cuja criança é amaldiçoada pela mãe, que leva meses para se recuperar da fraqueza, das febres e da palidez, não podendo sequer amamentá-la (é uma cabra que serve de ama de leite). Ela tem um forte sentimento de rejeição pelo menino, que nascera com belos olhos azuis, mas estigmatizada, com seis dedos nas mãos. Embora tenha sido batizado como nome do avô, o menino só é chamado de Custódio, como o chamavam antes do batismo. Ele cresce buscando sempre estar próximo da mãe, chamar a atenção dela, que, embora tente disfarçar, mostra afeição somente pelos outros filhos. Quando o pai viajava, ele dormia aos pés dela, sem que ninguém notasse. Já rapaz, dorme, um dia, embaixo da cama dela e, num instante de loucura, tenta possuí-la: Ele, em um repente transtornado, abraçou suas pernas, dizendo-lhe coisas com uma voz rouca a crescer em falsete. Ela reagira e, não conseguindo desvencilhar-se, puxara-lhe pelos cabelos e gritara para ele parar. Sua voz estava amedrontada. Ele a abraçava sôfrego tentando beijá-la. A mãe lutava para soltar-se,mas ele a dominava (p46). Ele tem vários filhos com as filhas dos agregados. Esse fato afasta ainda mais mãe e filho e ele passa a dormir em um quarto fora da casa.

Bisneto leva Custódio para a serra, já com 37 anos, numa tentativa de ajudá-lo. Lá, ele conhece Eugênia, afilhada de Bisneto e se casa com ela. Volta para a Trindades, onde tem 4 filhos: Ana, Beatriz, Elvira e o temporão (mais de dez anos mais novo que Elvira, será afilhado dela). Quando as meninas vão-se pondo moças, volta o comportamento doentio de Custódio: uma vez, força Ana a ir cavalgar com ele até o açude e ela volta chorando, mas esconde os motivos da mãe. Em outra noite, a acaricia na rede, conforme revela a Casa: Vi esgueirar-se pela porta do quarto de Ana, que já adormecera, seu pai. O fino véu que cobria a rede foi por ele afastado, emaranhando-se, e Custódio, aprumando as mãos trêmulas, tateara aquele corpo de menina ali descoberto (p64). O mesmo acontecia às outras meninas: Ana não soube o que se passou dois anos depois com a irmã Beatriz, e ela pensava que só com ela o pai agia daquele jeito que tanto a atemorizava com suas mãos pesadas, que a machucavam ao apalpar-lhe sôfrego todo seu corpo, fazendo-a chorar (p64). Um dia Elvira, a mais nova, conta às irmãs sobre as investidas do pai e, juntas, elas resolvem contar à mãe, que abandona o marido e vai embora de volta para a Serra com seus quatro filhos.
A mãe de Custódio morre, e ele, já abandonado pela esposa e pelos filhos, bem como pelos irmãos com quem se desentendeu por causa de herança, se desespera, deixa a barba e o cabelo crescerem e passa a rezar de joelhos no oratório. Volta a dormir no quartinho fora de casa. Com um tempo, fica parecendo um beato e, quando sua madrinha morre, desaparece de vez da Trindades, numa noite idêntica a de seu nascimento: absoluta, fechada, e silenciosa, em que a escuridão tudo envolvia parecendo um ser vivo, latente... (p69).

Após a história de Custódio, tem-se o retorno de Bisneto à Casa, onde padece de um cobreiro. Eugênia é quem cuida dele com dedicação, contando-lhe histórias, como a do “Menino com rastro de pluma” É ela quem herda a aquarela pintada pelo “amigo” de Bisneto. Ele morre sob os cuidados da afilhada e o espelho se parte como se encerrasse um ciclo.

Já finalizando o seu relato, a Casa diz que foi doada “de porteira fechada”, que está abandonada, servindo de pouso para animais e cangaceiros, sendo depredada por vândalos. Confessa que a sua estrutura está comprometida e conta da visita de alguns jovens, entre os quais se destaca uma moça, de nome Eugênia, a trisneta de Eugênia e Custódio. Ela é uma historiadora e, segundo o relato, conhece toda a história da casa e das vidas que por ali passaram. Há, inclusive, a sugestão de que ela contaria as histórias ali vividas por seus antepassados, quando um amigo dela diz: Ela anda enveredando por um ensaio sobre nossas superstições, daí tanto sobrosso, terminará contando a história desta casa e será este o seu terceiro trabalho. - Eugênia riu, franzindo o nariz em uma careta: Jamais deux sans trois, assim dizia minha mãe. Quem sabe seja agora o tempo de escutar o que as paredes da Trindades tanto ouviram. (p87). A narrativa termina com o prenúncio do seu início, dando a ilusão de uma narrativa cíclica. Finalmente, a Casa fica dentro da bacia hidráulica, quando uma barragem é construída em torno do remanso. Quando as águas adormecem, na Hora-Grande, ela sonha ser uma aquarela.

A narrativa finda com versos que parodiam os do final das histórias da Carochinha (“Entrou pela perna de pato, saiu pela perna do pinto...”), bem próprios, também, dos contadores populares de histórias:
“E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei”

ASPECTOS POSSIVELMENTEA AUTOBIOGRÁFICOS

O construtor da casa: Um português do Entre-Douro e Minho, Francisco José Gonçalves Campos, o primeiro dono, tem o mesmo sobrenome de Natércia.
Eugênia, a historiadora, trisneta de Ana tem interesse, como vimos, na história da Casa e, de acordo com o seu companheiro, se interessa por superstições e terminará contando a história desta casa e será este o seu terceiro trabalho. E é a própria Eugênia quem diz: Quem sabe seja agora o tempo de escutar o que as paredes da Trindades tanto ouviram. (p87). Pois bem, A casa é a terceira obra de ficção de Natércia, que é a autora do livro que dá à Casa a oportunidade de contar a sua história e tudo o que suas paredes “ouviram” no decorrer do tempo.
“Talvez,no romance A Casa, ‘os segredos múltiplos da reminiscência, o mundo que vive em nós, obscuro e palpitante’, na palavras do mestre Luís da Câmara Cascudo, ajudem-me a ampliar esta singular saudade dos sertões da terra” (Natércia – 28-5-99)

ESPAÇO

Não há uma localização espacial exata do lugar em que a casa foi construída, sabe-se apenas da descrição geográfica do lugar em que o seu terreno se situa:
Fiquei muito abaixo da Serra dos Ventos onde foram colocados antigos marcos de posse de pedra bastarda de sete palmos, demarcando as sesmarias daquela “terra descoberta” onde muito depois homens plantaram solares e café, escondendo estes últimos na sombra protetora das ingazeiras nativas.(p11)
Disto léguas da terra onde as pedras se encontram. Suas fragas imensas, pagãs por não terem nome, ali ficaram quando as águas baixaram, guardando nelas veios de liquens. Eram elas velhíssimas, já aqui viviam muito antes de ecoar, em longínquas montanhas, bosque e sobre as águas do mar Egeu, O Grande Grito pela morte de Pã e dos Deuses, quando o canto do galo anunciou a chegada do Menino (p11)
Essa alusão ao advento do Cristianismo, com o nascimento do menino Jesus, e a conseqüente “morte” do paganismo mitológico, representado pela figura de Pã, é apenas uma referência à antiguidade das pedras que a cercam, não dimensiona o tempo narrativo, tampouco o espaço.
A descrição geográfica de seu terreno é sempre reiterada:
Na mais serena da horas canônicas, chamaram-me de Trindades. Como tempo puseram-me o apelido de Casa Grande e, assim, de sobrenome, com minhas paredes grossíssimas e madeirame pesado, fincada neste remanso entre serrotes, perdida na imensidão da caatinga e dos céus...( p15)
A referência ao mar e à cidade de Canidé possibilita-nos inferir que a Casa foi construída no nosso estado, não tão distante do litoral:
“Meu filho viajou em busca de outros ares, para a casa de meu irmão, seu padrinho, encravada naquela mata de cajueiros próxima do mar” (p57)
Assim foram as palavras usadas para que o Bisneto se rendesse satisfazendo a curiosidade do amigo. Partiram nos finais de setembro no rumo do sertão de Canidé.
A narradora fala, ainda, de Vento Nordeste e Vento Araka’ti, próprios da região do nordeste.

TEMPO (em que se passa a história)– Longínquo: Meus alicerces foram feitos muito depois que a lagoa de águas salinas se evaporou (p11).

TEMPO (narrativo) – Não cronológico – tempo psicológico (da memória da casa)

PERSONAGENS:

Tia Alma – Nunca perdoou o vento pelo fato de não ter casado, morreu centenária. Ajudou a criar sobrinhos e afilhados. Muito religiosa. Dizia ser protegida pelas almas. Via-as constantemente “Certa vez levantara-se a correr, dando voltas ao redor da grande mesa atrás de um menino que só ela avistava” p29. Teve uma morte serena e, após anos, quando foram fazer o traslado dos ossos, ela estava tal qual foi enterrada. Um vento repentino desceu naquele momento e desfez em pó sua imagem e dela restaram suas duas tranças, longas, fartas e claras. Não mais a enterraram, pois alguém, ao esfregar as suas pontas entre os dedos, sentiu o crepitar sedoso daqueles fios palpitantes de vida. Foram estas tranças as primeiras relíquias daquele sertão (p32).
Bisneto – Homossexual – Era o Bisneto ainda um menino quando com um primo mais velho, em baixo do vão da escada, praticaram a posse inversa. Ninguém os viu, só os ventos e eu testemunhamos. Era o bisneto o invertido (p32). Era gêmeo; a irmã morreu e ele incorporou sua sensibilidade: O Bisneto viera gêmeo com uma menina, mas dela roubara suas forças na barriga da mãe e só ele de lá saíra com vida. Da menina ele trouxera a natureza sensível e delicada que tanto sofrimento lhe causou perante o pai, tios, irmãos e primos. (p34). Trouxe um espelho de Veneza. Padrinho de Eugênia, que se casou com Custódio, filho de uma de suas primas. Separada, Eugênia cuida dele até vê-lo morrer consumido por um cobreiro. Ele cresceu ouvindo histórias e adorava escrevê-las, nas noites de insônia, mas nunca as mostrava.
Custódio - Nasce após três dias de sofrimento da mãe, “de face”, com seis dedos em cada mão. No momento sagrado do nascimento, a mãe, em dor descomunal, o amaldiçoa. Sua irmã mais velha e solteira, a madrinha, pede em vão que ele desfaça a maldição e abençoa a criança. O menino nutre um amor doentio pela mãe que o rejeita e, uma noite, a ataca em sua cama, aumentando ainda mais o sentimento de rejeição que ela tinha por ele. Casa-se com Eugênia, com quem tem quatro filhos. Assedia e “molesta” as três filhas, motivo pelo qual a mulher o abandona. Cria cizânias entre os irmãos, e acaba, como eles, perdendo os bens herdados. Quando a mãe morre, se isola, deixa a barba crescer e desaparece numa noite tenebrosa, tal a que nasceu.
Eugênia – Nasceu empelicada, tinha um ar de leveza, quase feliz (p70). Afilhada de Bisneto, casa-se com Custódio, aos 16 anos, com quem tem 4 filhos: Ana, Beatriz, Elvira e o menino que não tem nome. Quando sabe que o marido molesta as três filhas, separa-se e volta para a Serra. Cuida de Bisneto até a morte dele e é quem guarda a aquarela da Trindades, herdada, posteriormente, por sua trisneta Eugênia.
Ana, Beatriz e Elvira – Filhas de Eugênia e Custódio. São molestadas pelo pai, que tinha preferência pela mais velha por parecer com a mãe dele.
Eugênia – Aparece no final da história. É bisneta de Ana e trisneta de Eugênia e Custódio. É historiadora, tem interesse nas histórias de seus antepassados e conhece a Casa pouco antes de ela ser tomada pela barragem. É a primeira que vê a casa submersa nas águas. Como a trisavô, nasceu empelicada.
A mãe de Custódio - o pai dela era de longe, veio para cassar-se com uma das moças da casa e teve 3 filhos: ela, a solteira (madrinha de Custódio) e um rapaz que morava próximo à pancada do mar. Custódio é o filho mais velho, há o Pedro (casado com Maria), o marido de Emenreciana (o mais “ensimesmado”) e outros cujos nomes não são citados.
Irmão (mais ensimesmado) de Custódio – casou-se com uma bela moça – Maria. Após o suicídio dela, ele vai embora para a casa de um tio.
Maria – Cunhada de Custódio. Tem mania de limpeza e organização (Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC). Muda toda a arrumação da casa. Tem uma gravidez psicológica e, frustrada pela impossibilidade de engravidar, comete o suicídio por enforcamento.
Pedro – Irmão de Custódio, casado com Emerenciana.
Emerenciana - moça cheia de vontades, que tem uma perna mais curta. Ela se hospeda na casa de Pedro e vai à sua cama à noite, seduzindo-o e convencendo-o a casar-se com ela – teve 3 filhas. Uma dormiu com o noivo da prima e engravidou dele. Emerenciana fez muitas das reformas que tanto desagradaram a Casa.
O Pintor – “amigo” de Bisneto, pinta uma aquarela da Casa.
O passador de gado – Vive pelo mundo a tanger gado e contar histórias.
Anselmo – sobrinho mais velho de Custódio, tomava conta de pássaros. Cuida da casa durante algum tempo.
Cosma – velha empregada da mãe de Custódio. Perdeu um filho (Francisco) no açude misterioso. Sabe do assédio de Custódio à mãe e aconselha-a
Outros nomes de empregados são citados: velha Jacinta, velha Josefa, negra Damiana (contadora de histórias).

INFLUÊNCIAS:
Assimilação das leituras de Luís da Câmara Cascudo - “Dicionário do folclore brasileiro”, Monteiro Lobato – “Contos de Andersen” (Irmãos Grimm e Perrault), Esopo e La Fontaine (fábulas).

SUPERSTIÇÕES, CRENÇAS E PROVÉRBIOS
A própria narradora declara tacitamente o misticismo que envolve a sua história e justifica-o:
Nesta terra os encantos e a superstição, que em tudo se imiscui, diferiam das lendas trazidas pelos homens brancos e negros de outras terras e greis. Foram as lendas despertadas à luz do candil, nas noites velhas, pela voz dos contadores de histórias. (p12)

Vejamos algumas superstições e alguns provérbios:
- A ausência do duplo refletido no espelho é sinal de morte próxima (p30)
- A “pedra de lioz”, fixada na soleira da casa, protege os domínios familiares. (p9)
- Não se deve passar a mão nos cabelos ao despertar de um bom sonho, pois este virá a se perder esfumaçado e esquecido nas voltas da memória (p 27)
- As almas do purgatório só no Natal e na Sexta-feira da paixão têm direito de ouvir os anjos a rezar (p29)
- Não se deve pronunciar o nome de alguém que já morreu para não interromper seu repouso, fazendo-o voltar. Antes do nome ponha a palavra – finado -, pois ele ao ouvi-la saberá sua nova condição (p29)
- Na Hora-Aberta (12h.) todos os demônios libertam-se, pragas e rogos são atendidos pelo céu. A pessoa deve fazer sesta (é a hora em que Pã adormecia) ou estar debaixo do teto de sua casa.
- A criança que nasce empelicada tem boa sorte.
- Quem chora na barriga da mãe se torna profeta (Bento, o profeta p16)
- Filho com nome de santo não dá sorte, é uma afronta a Deus, pois para ser santo aquela criatura teve de padecer, então é mesmo que chamar sofrimento para o filho (p47)
- O mês de agosto é um mês de luar mágico, de céu escampo, varrido de nuvens pelos ventos desenfreados, sem rédeas, neste mês que assistiu a tantos martírios de santos homens. (p55)
- O que é de raça caminhando passa (p48)
- A conduta já vem plantada em cada um de nós, já chega assim decretada.
- O silêncio do invejoso é ruidoso demais (p48)

AS HISTÓRIAS DENTRO DA HISTÓRIA

"A história do encoletado" (Contada pelo passador de gado a Bisneto e ao Pintor, seu “amigo”)
A casa dá voz ao velho passador de gado, enquanto recorda o dia em que ele passou por lá e contou a história do encoletado a Bisneto e ao pintor: o velho diz ter presenciado cenas pavorosas ocorridas em terras do Capitão Longuinho, um sujeito poderoso e vingativo. O Capitão, conhecido por suas tiranias e posses, é casado com uma moça 40 anos mais jovem, cujo pai recebeu léguas de terra e gado, numa espécie de escambo entre a filha e as propriedades. Um primo da moça aparece na fazenda para fazer negócios de gado com seu marido, e como nutriram afeto um pelo outro no passado, eles se vêem tentados pelo “proibido” e fogem juntos. Capitão Longuinho manda rastreá-los e seus capangas os trazem de volta. Ele corta o cabelo dela a facadas, deixando-a ferida e desfigurada, e a devolve ao pai. Tortura o rapaz até a morte, mandando costurar em seu corpo um colete de couro fresco, recém tirado do animal: Este era um gibão informe, sem feitio, trazendo ainda o cheiro de sangue e carne do animal abatido (p41). O couro começou a encolher, sufocando o corpo do rapaz: Foi morte lenta e supliciada daquele rapaz ali aprisionado, naquela couraça mal cheirosa, ao sol, sendo arrochado, provocando nele,já mais pro fim, golfadas de sangue. ... A vestia fosca tornou-se sua mortalha sem dela poder mais apartar-se ... O demônio do velho mandou jogá-lo no pasto para repasto dos animais sem o direito sagrado do último repouso.(p42) O passador de gado conta que, antes de sair daquelas terras malditas, enterrou o corpo apodrecido e que nunca mais nada de mal lhe aconteceu porque tem a proteção do “Morto Agradecido”.

"O Menino de rastro de pluma" (Lida por Eugênia para Bisneto)
Um dia antes da morte de Bisneto, Eugênia lê a história do Menino de rastro de pluma para ele. Ela conta que Lá para os confins do Reino das Pedras, escondido pelas furnas escarpadas de Aacauã ele nascera (p72). Ele pisava tão leve que não deixava rastro. Vivia só, com sua mãe e sobreviviam da caça, de forma bem primitiva. Um dia, ele pressente e confirma a chegada do cigano (supostamente o homem que o gerou e foi embora), cujo rasto ele acompanha até a casa de sua mãe. Confirmando a presença do “pai”, ele sai sem rumo, volta para despedir-se e vai embora. Ela o presenteia com seus instrumentos de caça: a espingarda, o bandaneco, a quicé e o fumo. Ele segue sem rumo definido, passa por privações e encontra como meio de vida a função de rastejador de cobras, que não deixa de ser uma forma de rastejar a morte. Na noite em que resolve encerrar o ofício, sofre o bote de uma delas e morre. A marca de seus rastros finalmente se revelam no chão batido e é através dela que os vaqueiros o encontram morto na caverna em que se refugiou.

ALGUMAS REFERÊNCIAS

Moça Caetana, Ela – A morte
A Moça Caetana remete ao mito da Onça Caetana. Segundo Nogueira (2002 p36), A onça é o animal mitológico mais importante, identificado com a morte violenta que, no sertão, é chamada Caetana. Trata-se de uma divindade tapuia-sertaneja, que, de acordo com Suassuna (1977 p11), é “bela, imortal e eternamente jovem, dotada daquela beleza ao mesmo tempo cruel, terrificante e fascinadora que é própria de sua hierarquia divina”
Hora Aberta – meio-dia
Hora Grande – meia-noite
Hora do Assim-Seja – Hora das decisões
Hora da Ave-Maria – Seis horas
Velha-do-Chapéu-Grande (o empalhador de cangalhas) – a seca (a fome).
A hora das Trindades – quando a estrela Vésper brilha no céu (meia-noite).
Brincadeiras: peteca, pião, cabra-cega, trava-língua, cantiga de roda (p61)
Pai-Pina – atraía a chuva
Bento – profeta, curandeiro (chorou na barriga da mãe)
Tasgo – espírito caseiro que persegue as mulheres tecedeiras, enovelando suas meadas (p25)
Histórias de Trancoso – Desde menino gostei de ouvir as histórias contadas por meu avô, as de Trancoso da negra Damiana e as do mundo vivido pelo passador de gado (p72)
Cabala – o número três traz em si um sentido obscuro (p21)
Neo-Simbolismo – referência à Grande Peste (p21)
Seca e Êxodo – Longo foi o tempo sem chuva e de estranha solidão de sons, pios e vozes... Os vaga-lumes apagaram-se na Grande Seca, e quando isso ocorreu, soube que fora abandonada. (p23)
Cena Naturalista: Invasão de morcegos (p23); o morcego suga o sangue da criança adormecida (p24)
Sebastianismo – A almas benditas de Tia Alma (“os três encantados e seus preferidos): “o eremita São João, que se alimentava de mel, gafanhotos e hoje dorme profundamente no céu; São Jorge, o vencedor de dragões e salvador de virgens cativas, guardião da lua, defensor das almas, das tentações, patrono de sua terra hoje tão longínqua e o príncipe guerreiro Dom Sebastião, mas este, tinha ela fé que, em um dia de bruma, chegaria no seu cavalo branco vindo de sua ilha encantada. (p26)
Sobrenatural – Tia Alma conversa com as almas, seus cabelos não morrem, seu corpo só se desintegra após anos enterrado, quando é desenterrado. O açude geme para anunciar as tragédias: ... ouço o gemido vindo das águas profundas do açude dele que nele se estrepou um menino. É ouvi-lo para que alguma tristeza se desencadeie e quem o escuta sabe que haverá luto (p33).
Movimento armorial – Agora não era mais tão necessário ferrar o gado no seu lado esquerdo, para mostrar a marca da ribeira onde se localizava a fazenda. O sertão não era mais a vastidão de terras sem limites, começara a ser demarcado com cercas e arames farpados. Prevalecia só a marca única do proprietário no lado direito da rês. (p84).
(O Movimento armorial foi criado por Ariano Suassuna (com um grupo de escritores e artistas), em 1970, e objetiva valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro através da realização de uma arte brasileira erudita criada a partir das raízes populares da nossa cultura. Segundo Ariano, armorial tem ligação com “essa heráldicas raízes culturais brasileiras”)
Temas polêmicos – incesto, pedofilia, homossexualismo, obsessão (TOC).
- A morte - por doença (Bisneto), afogamento (Francisco), suicídio (Maria), crime (amante da esposa de Capitão Longuinho), mordida de cobra (o menino do rastro de pluma).

PERSONIFICAÇÕES
A Morte aparece como personagem da história, e é referida pelo pronome pessoal Ela ou pelo nome de Moça Caetana. A sua chegada é sempre descrita como a chegada de uma pessoa. A forma como a narradora se refere a ela, personificando-a na figura de uma mulher através do pronome pessoal Ela, remete à forma que o contista Moreira Campos a apresenta no conto Dizem que os cães vêem coisas, do livro homônimo.
Era uma noite de luar, ela (Maria) com extrema cautela saiu do quarto e retornou com o tamborete da cozinha. Surpreendi-me ao sentir que, ao voltar a bela Maria para seu quarto, Ela viera na sua companhia. Ambas trancaram-se, aferrolhando a grande porta. Valeram-se de um dos armadores para pendurar juntas a corda retirada de dentro da canastra... Houve um demorado espanejar. Do quarto Ela saiu com aquela vida, deixando ficar seu rastro no torturado rosto de Maria. (p55)
Igualmente o Vento tem um desempenho fundamental: é ele quem conta à casa de sua solidez, é quem indica a chegada próxima de algum vivente, é quem avisa dos perigos e anuncia os presságios, função que é compartilhada como o Açude, que geme sempre que algo de ruim vai acontecer, sobretudo quando a Morte se abaterá sobre alguém.
Foram os ventos que me contaram histórias, me deram ciência. Na época da grande volta dos ventos, depois de agosto sempre de céu escampo, , se podia ouvir nas encruzilhadas como seria o tempo no ano vindouro. Foram eles nos seus cicios que me disseram da magia e força das palavras pronunciadas a desalojar o que está emparedado, acordando reminiscências, atiçando a memória (p10)

DIÁLOGO COM OUTRAS OBRAS

"A Fome "(Rodolfo Teófilo) – Aprendi que os homens não percebem o que lhes pode suceder dentro de suas casas, pois certa noite de muito calor vi emaranhar-se no fino véu da rede, onde dormia a menina de alguns meses, o pesado morcego. Aquela massa em movimento, de cor marrom-pardo, sobressaía ainda mais no véu branco. Conseguira entrar na rede e se arastara desequilibrado, tateando pelo pequeno corpo, aprumando suas membranas, dando curtos saltos na tentativa de vôo e por fim sugou-lhe o sangue. ... Nenhuma delas enxergou à luz das candeias as finíssimas pontas do par de incisivos na virilha da menina. (p24)
"Contos da Montanha" (Miguel Torga) – Falava ele das lendas da vizinha Galícia, próxima do seu Minho, onde a Virgem deixara nas pedras à margem de um rio suas santas pegadas; do caminho sacrossanto de Sant’Iago; das “mudanças de habitação” das necessidades de pastagens; das migrações sazonais; das épocas do plantio; das florações; dos cheiros enraizados do restolho das ceifas; do doce rosmaninho; dos verdes e misteriosos soutos de castanheiros; das aromáticas giestas; dos altos choupos; das resinas dos nevoentos pinheirais; dos apascentas rebanhos na velha abeogaria; das águas sempre fartas e rumorosas dos rios entre os vinhedos; das águas das sangas; da caleira; da ria contida e dócil nos seus inúmeros veios; das fontes límpidas (p18)
"Inocência" (Visconde de Taunay) – Ela bem moça, a mando do pai, casara já fazia algum tempo com este Capitão Longuinho. Para isso houve vantajoso escambo entre o pai dela e o dito Capitão. A moça valera léguas de terra e gado... A moça era uma boniteza só. Foi quando aparecera na fazenda um primo dela... Alguém soubera que, desde crianças, havia entre ele e a prima um grande bem-querer... Esquecidos pela loucura, a cegueira, que vem com a paixão.. fugiram os dois no rumo de sua própria perdição. (pp40-41) O rapaz é assassinado, como Cirino.
" Cecília Meirelles" – lirismo: Construíram-me entre serrotes e acima de mim passaram pequenas nuvens, fiapos de algodão que se agrupam,ampliam-se... O mais belo dos céus é quando ele se transforma em extenso campo de plumas brancas e o azul fica a vagar esmaecido.(p11)
"Palimpsesto" (Virgílio Maia) – Hora das Miragens. Não se deve olhar para trás (p10). Lembra “Visagem” (soneto de Virgílio Maia). Há um soneto de Virgílio dedicado a Natércia ( Soneto com mote de Natércia Campos) e outro dedicado a Trindades (Soneto d’a Casa d’as Trindades). Leiamos o último:

Aquela casa, aquela construída
Para romper os séculos-amém,
No alvor do esguio oitão mostra também
Uns gestos de chegada e de partida

Guarda a sacralidade de um ermida
Quando raro perfume às vezes vem
Juntar-se aos vagos vultos que ninguém
Ousa apostar se desta ou da outra vida.

A tarde traz balidos tão tristonhos
Ouvidos, longe assim, como que em sonhos
Na sala de visita.
E o Bom Pastor

Talvez nem mais assista àquela casa,
Ou, talvez, quem dirá, talvez que jaza
Na memória beirã de um bisavô.

"As Corujas" (Conto de Moreira Campos, do livro Dizem que os cães vêem coisas) – Tempo em que das corujas não se comia sua carne, pois ainda não sabiam que esta lhes daria poderes de adivinhações. A crença agoureira da morte pousou nesta terra sobre as asas da pequena coruja alvacenta, a Rasga-Mortalha, cujo grito fazia lembrar um pano resistente rasgado com brusquidão. Era esta coruja de canto lúgubre voar baixo e insistente sobre uma casa onde houvesse um doente de cama, para se acatar seu prenúncio. (p13)
"Dizem que os cães vêem coisas" (Conto de Moreira Campos, do livro homônimo) – Lembro da primeira vez, e havia de ser nas Trindades, quando Ela aqui chegou em missão. Uma das portas abriu-se sem que ninguém a empurrasse e nem a frágil aragem a tocasse. Os ventos haviam me alertado que a Morte assim entra nas casas quando, silenciosas e inexplicáveis, as portas se abrem. (p15)
NATÉRCIA: Os cachorros acuam e se enroscam temerosos com o que vêem... (p10)
MOREIRA: Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (edizem que os cães vêem coisas). (p153)
Presenciei durante várias gerações a chegada Dela abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços e muito aprendi sobre suas metamorfoses e disfarces. Nem sempre entra translúcida e repentina como da primeira vez que aqui chegou. Por vezes se instala pesada como o fardo de uma cruz... (p17) A primeira vez foi a Morte de uma criança, por isso ela estava “translúcida”.
"Lamas e Folhas e Dizem que os cães vêem coisas" (contos do livro homônimo) – morte de criança por afogamento: junto à fria cruviana, ouço o gemido vindo das águas profundas do açude dele que nele se estrepou um menino. (p33) "Iluminuras" (livro de contos de Natércia – intertextualidade homo-autoral)
A chama de luz aqueceu-lhe a alma, afastando-lhe as sombras. Aproximando-se da casa escutou a voz serena da menina: “canta Maria a melodia singela./ Canta que a vida é um dia...” (Iluminuras p19)
Cantarolava baixinho ao aguar suas flores, inclinando seu longo pescoço, olhando-as como se acarinhasse seus ramos: “Canta, Maria, que a melodia é singela,/ canta que a vida é um dia, / que a vida é bela, linda Maria” (A Casa p50)
O tempo passou, sarou mágoas e dores, deixando, no entanto, a latejar as imorredouras e doídas cicatrizes,na terra e nos seres. (Iluminuras p27)
O amor e desvelo para com seu padrinho sobrepujaram nela as perdas, as mágoas. O tempo também se alíara para amenizá-las. Dizem que ele só não cura – velhice e loucura. (A Casa p70)

Bibliografia
CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Editora UFC, 2004
_________________ Iluminuras. 3a. ed. Fortaleza: Premius, 2002.
NOGUEIRA, Ma. Aparecida Lopes. Ariano Suassuna, O cabreiro tresmalhado. São Paulo: Editora Palas Athena, 2002
SUASSUNA, Ariano. História d’O rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da onça caetana, Rio de Janeiro: José Olympio, 1977

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

“Fragma”, de Cândido Rolim e “Dulcinéia em Hollywood”, de Cherlanyo Barros

A leitura do livro “Fragma”, de Cândido Rolim, é desconcertante. Logo se instala uma perturbação... é que o desafio se impõe da primeira à última página. A indisciplina com a forma, a relação de escassez com as palavras e de amor com as lacunas leva o leitor a uma ginástica mental ininterrupta. São estilhaços de pensamentos, fragmentos de concepções e filosofias que exigem uma (re)construção de sentido para a possibilidade de fruição. O transtorno é próprio da prosa contemporânea fragmentada. Há sempre mais subtexto que texto. Assim, o pequeno livro se agiganta, desaparece a idéia inicial de minimalismo, as construções crescem a cada leitura. Pensamentos, aforismos, nunca se sabe... De um tijolo se vê um prédio. Viagens... É denso e desordena... “forma, contorno, tudo temor de extensão”.

Já “Dulcinéia em Hollywood”, de Cherlanyo Barros, traz histórias curtas, bem costuradas, urbanas e interioranas, mostram a mudividência rural e citadina do autor, que, com igual desenvoltura, transita pelos dois mundos, sem qualquer artificialismo. A contraditória pureza de Quirina, a inusitada paixão de Margarida, a egenhosidade de Rosalina, a imprudência-heróica de D. Socorro, as artimanhas de Julieta e a insatisfação da sonhadora Dulcinéia colocam em evidência personagens femininas, pessoas comuns, ingênuas, mas capazes de tomar posição. As histórias “O casamento de Rosalina Sapiranga”, Joaquim Bonequeiro”, “O rádio” e “Zequiel e a bodega” dão vivas à ficção regionalista e resgatam o universo interiorano, com suas figuras emblemáticas: O coronel prepotente, a falsa beata, o bodegueiro, o bonequeiro. Gostei especialmente de “Amor de peixe”, um conto bastante simbólico, que mostra a solidão e a insatisfação do homem contemporâneo, e “Desilusão”, que, por outro viés, também mostra a insatisfação humana e, especialmente, o desejo pelo inatingível, que também está latente na personagem Dulcinéia. Muito bom!

Crimes (quase) perfeitos: o intertexto em Pedro

A leitura de dois livros de contos: O peso do morto e Brincar com armas, de autoria de Pedro Salgueiro, deu-me a oportunidade de perceber a quantas anda o conto cearense contemporâneo. Os primeiros textos lidos já me deram uma noção do seu estilo bem resolvido, vigoroso, que fala sem a voz embargada dos experimentalistas (Nada contra os experimentalistas).

Iniciei minha aventura com o Brincar com armas, cuja capa já constitui um intrigante motivo para a leitura. A parte um (do Livro primeiro) justifica o título da obra de forma literal: o leitmotif são crimes de vingança, por legítima defesa ou por acidente, todos cometidos com armas letais. Neles Pedro inicia o processo da dinâmica homo-autoral, estabelecendo o diálogo entre os seus textos, através da recorrência a temas, argumentos e motivos narrativos. Vitor Manoel de Aguiar e Silva (1991 p.630), ao enfocar essa técnica, diz que ela constitui uma espécie de auto-imitação marcada tanto pela circularidade narcisista como pela alteridade e que ao auto-imitar-se, o autor se mantém o mesmo quando já é outro.

Pedro faz com que o leitor, ao ler seus contos, percorra o caminho de volta e recorra a histórias anteriores, como para ter um esclarecimento ou, no mínimo, a curiosidade de rever como o que está sendo dito já foi dito. É, como colocou Albert Cammus (apud CULT:27) uma conversa entre os textos, seus olhares mútuos, que são claramente percebidos.

Explico melhor: O narrador de O olhar parece-nos o assassino de A volta. Claro que há alguns dados escamoteados, mas o leitor atento percebe a relação dialógica entre as duas histórias. O mesmo ocorre com Em família e Ausência, quando o narrador enfoca a morte da matriarca e a reclusão do viúvo. Igualmente acontece em Ontem e Hoje, cujos títulos já denotam a demarcação temporal de um fato presente e passado, no caso, a opressão familiar exercida pelo patriarca e a liberdade a partir da invalidez ou da morte dele. O intertexto está presente, de forma ainda mais elaborada, nos contos O pânico e A rosa encarnada, ambos com a atmosfera misteriosa bem ao estilo de Edgard Allan Poe, que influencia, incontestavelmente, outros contos da Parte dois.

Assim, ele vai criando um painel de seres fictícios enredados na segregação de culpas, nos silêncios, na loucura, na solidão, nos segredos, nas doenças, na opressão do meio ou da família, enfim, todos lacerados pela vida, de forma, podemos dizer, irremediável.

No Livro segundo, senti a sombra de José J. Veiga, um dos maiores nomes da prosa fantástica e alegórica do nosso pós modernismo. A mesma atmosfera de Sombras de reis barbudos e de A estranha máquina extraviada (os contos do livro, não exatamente o conto homônimo) perpassa os nove contos, sem que haja a interferência do elemento fantástico, mas apenas do mistério. O narrador parece único em todos os contos e é uma criança como o da maioria dos contos de Veiga. O sentimento de perseguição, a presença de uma “Companhia” (leia-se A usina atrás do morro, de Veiga), o mistério do desvio do trilho do trem do vilarejo, as investigações, a estranheza do comportamento das pessoas parecem simbolizar algo, metaforizar uma situação. Pude achar que não estava delirando quando vi nO peso do morto o conto Os loucos de Papaconha dedicado aos “novos comunistas”: Metáfora? Alegoria?

Senti ainda a influência de Dalton Trevisan nos contos de O espantalho e no elucidativo Daltonianas em fá maior (de Brincar com armas). Assim, vão ficando claras as referências de suas leituras, de suas influências, o que dá consistência ao seu estilo enxuto e forte, que não é decorrente da pura intuição, mas de um trabalho de linguagem consciente, com o conhecimento de técnicas e muita, muita criatividade. São “crimes” perfeitos. Vale conferir.

domingo, 19 de agosto de 2007

Aldir Brasil: Um contista Urbano

Aldir Brasil é um contista contemporâneo essencialmente urbano.Suas narrativas, em geral curtas, têm a marca da cidade e dos símbolos do seu tempo, tecendo uma escritura de registro. Seu estilo fragmentado dispensa elos coesivos e se constrói na fértil imaginação que revira a memória de sua adolescência para, através da aguçadíssima observação, extrair do cotidiano a matéria de seus escritos.

Extremamente sensível e criativo, ele passeia pela cidade, percorrendo suas ruas e seus prédios, numa tentativa de reconstrução, através da escrita, de uma cidade perdida em sua memória. Fortaleza é, assim, desenhada em suas ruas (Governador Sampaio, Carlos Vasconcelos, João Cordeiro, Costa Barros, Guilherme Rocha) e seus recantos (Santa Casa, Leão do Sul, Colégio Militar, Catedral, Galeria Pedro Jorge, Francinet Discos) prenhes de vidas e histórias para contar.

Em “A Fortaleza que poderia ter sido”, ele faz o leitor reviver figuras como Alba Frota e Virgílio Távora, bem como os Carnavais do Líbano, o jornal Correio do Ceará e as meninas do Colégio Imaculada. Nessa busca do passado, ele lamenta o fim de um ciclo da vida cultural da cidade com a destruição da casa de Alba Frota: “traduções de Dostoièvski feitas pela Rachel sob o olhar atento dos meninos do partido/Milton Dias falando de Valery/enquanto o piano inundava os ouvidos/ Venderam-na com todo mundo dentro (A casa de Alba)


Atento aos personagens da cidade, ele denuncia o mascaramento da prostituição infantil: “Ontem o gringo me ofereceu 50 paus pela fotos e mais 20 pelo fardamento escolar, garanto para o Sr. que ele não me tocou” (Pequena história de Adelita). A figura da prostituta, como a continuar a historinha de Adelita, aparece em “Irmã das almas ou o valor de cada um” e em “A espera”, na figura de uma Vênus que logo é a suicida Mariangeles, cuja espera inútil por aquele que a tiraria da vida leva-a a “explodir as têmporas”. Solução parecida com a do “grande guerreiro branco” que, derrotado pelo Alzheimer, é levado por uma linda Mãe d’Água e nunca mais foi visto pelas bandas da João Cordeiro (O estranho caso do homem da Governador Sampaio)

No encalço dos personagens que pululam nas ruas da cidade, há ainda o relato, tão lacônico quanto completo, da felicidade dos transexuais que realizam o sonho do cirurgia: “O corte entre as pernas transformou Jeremias em outro homem”; e a narração de pequenos flashes do cotidiano: “Depois de 16 anos de casados, ele trocou-a por uma negrinha adolescente. A dor foi tão intensa, que ela resolveu fazer terapia na Costa Barros” (Terapia), com uma sutileza que não isenta sua linguagem da extrema vigorosidade que possui.

Pequenos fatos corriqueiros transformam-se em notícia literária: “Armando de Castro, comerciante da Conde D’Eu, aplicou um pequeno golpe na praça e fugiu com a negrinha Joana sem avisar à família” (Pequenas transgressões II) e o humor parece ser a forma de sublimação das adversidades: “Ver o mundo de um só lado” (Paralisia facial)


Seu olhar agudo penetra, onisciente, os recônditos: Três senhores,em mangas de camisa/ saboreiam/sem que ninguém perceba/ a discreta T-shirt da moça ao lado/que guarda em silêncio/seu afeto pelo Moacir” e sua sensibilidade mostra a passagem do tempo com suas intempéries e benesses: “As sardas e o cabelo ligeiramente avermelhado cederam gentilmente o lugar às rugas e ao prestígio” (Vítor juiz).

Esses breves comentários mostram que, sem dúvida, Aldir Brasil Jr. está entre os mais produtivos escritores cearenses da contemporaneidade. O estilo fragmentado de suas narrativas curtas, a linguagem sutil, mas extremamente forte, são as marcas de uma escritura criativa e original nas nossas letras.

“Bolha de osso”: estética do inconcluso


A Literatura pós-moderna tem como uma de suas principais características o ecletismo. Há espaço para todas as tendências: tradição e modernidade dialogam sem problemas, os gêneros se entrecruzam, legitima-se a pluralidade. Parte da geração 90, especialmente a da prosa, tem abolido o discurso linear e investido na fragmentação do texto, modelo que vem de experiências anteriores como as de James Joyce, Virgínia Woolf e Oswald de Andrade, entre outros transgressores em sua época. A tradição permaneceu ao lado dessas novas invenções. Nelson de Oliveira, no prefácio da coletânea Geração 90 – os transgressores, falando desse assunto, convoca o leitor a “deixar de lado a conotação apenas positiva do termo transgressão e meramente negativa de conservação”. Confirma, assim, a ampliação dos espaços para todas as tendências, ao dizer que tradição e ruptura são “forças equivalentes, ambas trazendo no bojo cargas igualmente positivas e negativas”. A esse respeito, Bauman diz: “Os estilos não se dividem em progressista ou retrógrado, de aspecto avançado ou antiquado. /... / Todos os estilos, antigos e novos, sem distinção, devem provar seu direito de sobreviver, aplicando a mesma estratégia, uma vez que todos se submetem às mesmas leis que dirigem toda a criação cultural, calculada – na frase memorável de George Steiner – para o máximo impacto e obsolência imediata”.

Além da eliminação das fronteiras entre arte erudita e popular, clássico e moderno, da preocupação com o presente e do fragmentarismo textual, a geração de 90 mostra uma postura essencialmente individualista. Vivendo em um mundo sem norteadores para sua existência, ela parece voltar-se para si mesma, preocupando-se em criar o que parece lhe satisfazer. Quanto ao leitor... cabe a ele o desafio de encontrar (ou não) sentido nos textos. Não há, como assinala Bauman, projeção para o futuro, há uma tendência à transitoriedade, bem como à concisão, reflexo, talvez, de uma sociedade onde tudo deve ser consumido muito rápido e tudo é descartável. Inexiste, pois, na produção desses escritores, preocupação em serem entendidos ou vontade de radicar-se na história da literatura.

Jorge Pieiro, que iniciou sua trajetória literária no final dos anos 80, é assumidamente um experimentalista. Sua produção ora irônica, ora nonsense, ora surreal, é naturalmente malcomportada, fragmentada e, na maioria das vezes, hermética, insana. Seus livros são sempre considerados “magros cadernos de palavras”, exatamente por que não há preocupação com a extensão dos textos, tampouco com o número de páginas. São, entretanto, jogos de palavras densos, caudalosos que desafiam o leitor e, feito o mergulho, fazem sentido. Têm uma lógica, ainda que particular.

Ele acaba de lançar seu oitavo título, Bolha de osso, uma bem cuidada publicação, com o selo Edição do Caos, sedutora já na aparência. A obra se compõe de 69 contemas, como ele mesmo faz questão de designar. Contemas porque são contos curtos, ou ensaios para contos. Contos que podem também ser considerados poemas, prosa poética, enfim: contemas. O gênero é o que menos importa. Importa a força de sua palavra, sempre lacunosa, mas extremamente firme, certeira, construtora da estética do inconcluso. Sim, porque seus textos iniciam e logo findam sem terminarem de fato.

A obra começa, bem a Brás Cubas, com uma “quase advertência” ao leitor: “Sem iludir nem permitir falsa luz de obviedades, convém adverti-lo: prosseguindo, enrede-se e não se espante com desencantos. Daltontrevisanizo-me uilconiamente. Deixe-se, de sentir. Morrer é casulo. Liberte-se. Torne-se. Nesses textos-contemas salve-se em espírito de soluços. Procure tornar-se cúmplice de palavras, sábio. Verá que natureza e amor se fazem com inexatidões, perplexidades, alegorias e prenúncios. Se preferir, desista. Ninguém se quer mártir em folhas de papel”. O estilo JP é marcado a partir daí: desafio ao leitor, equilíbrio na inexatidão, influência assumida do curitibano Dalton Trevisan, leituras antigas e permanentes. Identificação. Também declaradas estão as leituras de Uilcon Pereira que, no dizer de Nilto Maciel, é escritor do século XXI, do futuro, o criador de uma nova literatura. De fato, JP, como Uilcon, corre um sério risco de se tornar um de seus insuspeitos personagens. Foi o Nilto que disse isso do escritor paulista, comentado que “em sua obra ocorre uma sobreposição de realidade, não se sabendo bem onde começa a ficção, onde existe a fantasia”. Digo o mesmo de JP. Seu espírito irônico e corrosivo transplanta muito da realidade para a ficção. Há arranjos cáusticos, outros bem-humorados, homenagens, pequenas vinganças até e há Ele na transversal de tudo.

No primeiro contema, “Prelúdio”, outra influência escancarada que vai perpassar toda a obra: Guimarães Rosa. A linguagem elíptica e inventiva reconta a história de Riobaldo e Diadorim, mais precisamente, o momento em que o jagunço descobre que o companheiro, então morto, por quem estivera apaixonado era uma mulher: “Enquanto desviei céu e olhar, vi longas barbas, era Miguelão desfazendo de cruz o sinal de ex-pranto. Vocês, atordoados, correram pelaí. O medo é uma corredeira. Eu engasguei na cantiga: - Asas de diabo mais compridas. No alto, Miguelão beijou Diadorim, enciumando Rosa entre as pernas de Riobaldo, que no meio de tanta dor repetiu o gesto” (p.13). A linguagem e o estilo são totalmente roseanos, como se comprova ainda em: “Longe dali, alguém se engoliu de cianureto. Débil. Cápsula de feliz morte, nele se desvivendo como sempre”. Note-se que em “Enquanto desviei céu e olhar” é a sonoridade quem dita o sentido: “Enquanto desviei seu olhar”. Rosa todo.

Há histórias nas histórias. Pode não haver a lógica tradicional. Ou ela pode estar velada: “Mania toma seu homem entre mãos, beija-o. Com o facão parte aquele principal em dois. E o dá a seus cães. – Isto é o corpo de nossa última aliança. Anoitece” (“Beijo de Anum”) - A mulher decepa o órgão sexual do marido e celebra a fidelidade então possível, como se consagrasse um corpo divino, qual o padre faz com a hóstia no altar. Assim se fazem todos os textos, sem digressões, explicações ou... conclusão. Anoitece. Que conotações partem desse verbo? Muitas.

Seus personagens são seres não-felizes, dilacerados, escassos de existência. É a dançarina assassinada na boate, é o mendigo que, na hora do amor, esquece a miséria: “Primeiro lambe-lhe a coxa alta e olho. Depois descem de dois até a arena. Íris conhece aquele chão. Ali ele esquece vontade, fome, mãos, pés” (“Kaletzip”); a prostituta sempre acompanhada e sempre só, o homem anônimo que anda na contramão do progresso, a mocinha seduzida, a índia despersonalizada, o macho devorador, vampiro, estuprador, o Marquês impotente, o velho tarado que se aproveita da ausência da mulher, o necrófilo. Muitas histórias de sexo contadas com humor, assassinatos e júris quase imperceptíveis... O sopro trevisaniano é muito presente, mas a linguagem de JP, cheia de metáforas (o sexo da mulher é a azeitona mordida, a hortaliça viçosa) e subterfúgios, uso consciente das potencialidades expressivas da língua, garantem um estilo próprio, ironicamente lacunoso, emprestando certa safadeza aos personagens masculinos que muito têm do Nelsinho d’O Vampiro de Curitiba, embora não seja essa a obra de Trevisan que mais esteja presente.

Oswald de Andrade e seu resgate do Brasil colonial aparecem na retomada da índia como ser explorado. JP a mostra seduzida pelo branco: “13 anos, quer mais sonhar não. Rapagão passeia mãos, corpo. Pensa: ‘Rapagão é Vasco da Gama’. Diz para ele cuidar de descobrir outros mundos. Rapagão gosta, danado. Sem fôlego, moreninha. Rapagão cruza fim de mundo. Cheio de especiarias retorna. Pensa: ‘Índias, melhor lugar de qualquer mundo’ (“Moreninha”). É inevitável lembrar Iracema, índia de José de Alencar que, no romance homônimo, é seduzida pelo português-colonizador Martin e depois desprezada. Em “Cara pálida” essa lembrança se explicita e concretiza-se na nominação: “/.../ Matar a índia. Diz primeiro, te amo. Depois arrebenta. Zíper abaixado. Mão de calo preciso. – Uhhh! Iraceminha!”. Observe-se a conotação do verbo matar e a referência ‘quase implícita’ a uma transa. Em “Crua”, esse ritual é simbolicamente antropofágico e a idéia é de violação: “Covarde. Alguém é covarde sempre. Cobre-se de Capuz e adentra. Há três mulheres vestidas /.../ Empurradas por outros dois, duas colocam capuzes, também. Obrigadas, devoram a gritos carnes de Tu”.

A JP o que conta não é o que conta. A forma como o faz é que importa. Seu hermetismo, às vezes apurado, como em “Longe de Arthur”: “Seis que um dia vieram dentro de mim. Seis. Sei o que sinto. Não sei, as marcas. Massas de mãos. Eu, Ninica, sei o que me trinca. Seis não dá em nada” deixa brechas para o leitor inferir ou atribuir um sentido ao que parece não tê-lo. Ninica pode ser a narradora ou a narratária. No primeiro caso, entrevê-se a lembrança de um estupro. No segundo, o narrador é um homem e Ninica é a narratária de seu discurso; “não dá em nada”, assim considerando, pode inferir a frustração de uma relação ‘trincada”, não mais possível. O que era já não é. As interpretações assim se fazem e, ao cabo de um percurso caudaloso, após fugir de tempestades e escapar de monstros marítimos, há terra à vista. O leitor deixa de ser passivo e constrói seu próprio enredo.

Jorge Pieiro é uma experiência prazerosa porque há o que ler. Linhas e entrelinhas. Textos e subtextos. No final, no contema 69, não despretensiosamente, “de frente, olho no olho”, e não no reverso, tudo dá em mar e... a Bolha de osso, tão dura de roer, vira um brinquedo para quem gosta de provar bem sucedidas experiências com as palavras. Sua literatura tem valor não porque é transgressora, de ruptura, numa época em que também se elevam os enredos tradicionais, que não descosturam a gramática nem fragmentam seus discursos, mas pela autenticidade de seu estilo, pela irreverência de sua postura como escritor e pela capacidade de manter-se novo dentro do que já não é.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998
MACIEL, Nilto. Uilcon Pereira, um Escritor do Século XXI http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=128&cat=Ensaios&vinda=S Acesso em 7/7/07
OLIVEIRA, Nelson de. “Transa Trans: Tributo às tribos extintas” In: Geração 90 – os transgressores. São Paulo: Boitempo, 2003
ROSA, Guimarães. Grande sertão:veredas. Ria de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
TREVISAN, Dalton. O Vampiro de Curitiba. 27ªed. São Paulo: Record, 2004

Publicado no Carderno de Cultura do Diário do Nordeste - 19.08.2007

Sintaxe do Desejo: Síntese da Poesia Visceral de Dimas Macedo

"Ânsia visceral de mim
que a face me estrangula..."
(“Espumas” p.42)

São raros os críticos que se mantêm fecundos produtores de textos literários. Dimas Macedo é uma das felizes exceções. Assíduo leitor, sobretudo da literatura local, escreve semanalmente um artigo sobre obras representativas, valorizando a arte de sua terra e levando ao público nomes muitas vezes desconhecidos. Sua disposição para a pesquisa, tanto na área do Direito quanto na da Literatura, rendeu-lhe publicações significativas que tiveram repercussão nacional: Lavrenses ilustres (1981), Leitura e conjuntura (1984), Ensaios de teoria do direito (1985), Lavras da Mangabeira – Roteiros e evocações (1986), O discurso constituinte (1987), Notas para a História de Alto Santo (1988), A metáfora do sol (1989), Ossos do ofício (1997), Tempo e antítese (1997), Martins Filho e Joaryvar Macedo (1998), A obra literária de Alcides Pinto (2001), Marxismo e crítica literária (2001), Crítica imperfeita (2001), Pesquisas de direito público (2001), A face do enigma (2002), Crítica dispersa (2003), Entrevista (2003), Décimas a Alcides Pinto (2003), Política e constituição (2003), Filosofia e constituição (2004), Bibliografia – roteiro para pesquisadores (2004), Ensaios e perfis (2004), A letra e o discurso (2006).

Como poeta, pode-se dizer que é um dos mais produtivos da literatura cearense contemporânea. Estreou em 1978, com Primeiros poemas, dois anos depois publicou A distância de todas as coisas, obra que marcou seu nome na história das nossas letras. Deu uma pausa para dedicar-se à carreira acadêmica e jurídica, e, em 1990, voltou à cena com Lavoura úmida; em 1994, lançou Estrela de pedra e, em 1996, Liturgia do caos. Mais uma parada, então para repensar sua trajetória, reeditou o segundo livro em 2001, e retornou em 2003 com Vozes do silêncio. Em 2006, ano do seu cinqüentenário, editou Sintaxe do desejo, uma coletânea que reúne seus mais antológicos poemas. Além de uma síntese de sua produção poética, esse livro é também uma celebração, um coroamento de sua trajetória (como poeta), quem sabe o fechamento de um ciclo.
Os textos selecionados representam um balanço do seu exercício na arte do verso, no transcurso dos anos de 1978 a 2003, marcos da publicação de seu primeiro e último livro (até então). O que se constata é a manutenção do mesmo universo temático e a estabilidade de seus procedimentos estéticos, sua criação consciente do texto como um trabalho de linguagem. Profundamente ligado às raízes, telúrico e sentimental, o poeta conserva na coletânea os principais poemas que louvam a cidade-mãe. “Lavras” (p.26) é o primeiro deles:

Longe daqui do tumulto,
lá no meio das coisas,
prostrada para o universo,
posto que existe,
Lavras é a cidade mais bela do mundo,
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo.

A exaltação da terra natal traz a voz de Drummond, em sua constante evocação de Itabira, mais ainda a de Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. (“O Guardador de Rebanhos”). É recorrente a crítica associar a poesia do Dimas à de Drummond, bem como à de Fernando Pessoa e seus heterônimos. A assimilação das leituras e a identificação temática e estilística está clara em “Ortônimo”, metapoema que norteia o espírito da criação macediana.

A última parte, ‘Dispersão’, traz ainda “Musa” e “Esfinge”, dois cantos de amor à sua Lavras, que, mais que cidade, é a imagem de sua infância: “Quando me lembro que nasci em Lavras, / a solidão de minha infância é tudo / e a expressão da existência é nada /.../ pois as ruas de Lavras são paredes/ que se atravessam em mim como uma ponte.” Essa força que o liga ao passado, como as inquietações diante da existência, leva-nos a Cacaso (em “Lar doce lar”) “Minha pátria é minha infância / por isso vivo no exílio” . Há no homem um menino que guarda inexoravelmente sua infância e vive exilado de si mesmo, procurando o eterno retorno a um tempo impossível. Daí as perscrutações existenciais, a inquietação metafísica tão constantemente revelada em sua poética, o saudoso recordar (“Elegia” p.36):

Lembro meu pai
apascentando estrelas
e solidões
em tardes douradas
e a minha mãe
na sombra do alpendre
e olhos no algeroz.

A saudade, os questionamentos sobre a vida, o amor, tudo se transfigura em poesia. Ele mesmo disse, em entrevista ao Diário do Nordeste, por ocasião do lançamento de Lavoura úmida, em 1990, que “a Literatura é um lenitivo para o intelectual exasperado, mas é um lenitivo para quem busca uma resposta para a vida”. Com efeito, sua poesia é visceral, sangüínea, sua mais segura forma de sobrevivência e busca, como se lê em “Palavras” (p.39):

Para me suportar
a mim mesmo me basto.
Para não me morrer de tédio
mergulho-me palavras.

A salvação do homem está na palavra. Sondando o enigma da existência ou levantando questões sobre o estar-no-mundo, o poeta lança um “Dilúvio” (p.30) de interrogações (aqui resumidas):

O que será esse mundo,
esses cosmos sem fim,
essa utopia?
Correm para onde, então,
essas filosofias?
/.../
Dai-me, Senhor,
conter em minhas mãos
o nada e o não-ser
e o desfazer de mim
a dor dessa introspecção

Na solidão dos conflitos, o grito de angústia é indagação do mistério. O poeta pede a ajuda divina para livrar-se da dor de existir. A fé nesse Deus que “muda de residência”, mas “carrega a nuvem de seus passos”, é que o ajuda a “viver sozinho no deserto / buscando o amor / sentindo a esperança” (“Escudo” p.110).

Em “Enigma” (p.66), é o tempo sua clausura. O vento, elemento do efêmero, aparece, em sua poesia, personificado. Se ele é a calmaria do tempo-espaço fundidos, é também seu confidente e cúmplice: “no centro da alma / há um castelo / no qual escuto / as confissões do vento” ( “Ânsia” p.79). A angústia diante do fugaz, bem ceciliana, é uma herança simbolista, e remete à busca de integração no cosmo, desejo de transcendência. Esse sopro simbolista está, inclusive, nos efeitos sonoros dos primeiros versos de “Metáforas”(p.46): “Ó cochas, ó conchas, ó formas”, onde se ouve claramente um sopro de Cruz e Souza, motivo do poema “Poeta”, de Vozes do silêncio (p.14): “João da Cruz e Souza: / eis o meu nome./Tenho a alma clara/ e de cintilações / é feito meu destino”.

A ansiedade de saber-se ou encontrar os sentidos da vida leva-o ao conflito existencial:

Porém a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

A saída é a fé, como vimos no clamor ao Pai, ou a arte:

O mito de toda a existência é sempre a arte (“Lavragem” p.37)
A arte: minha suprema realização (“Diário” p.44)

A Literatura, sua arte por excelência, sem dúvida, é seu alento maior, como ele mesmo declarou em entrevista ao jornal O Povo, em outubro de 2006, na véspera do lançamento de Sintaxe do desejo:

“A literatura existe para substituir a vida, porque a vida por si mesmo não se justifica. A arte justifica a vida, porque a vida precisa ser reinventada e ela é reinventada fundamentalmente pela palavra. A palavra cria, a palavra transforma, a palavra liberta”.
Exercitando redondilhas, sonetos ou versos livres, Dimas mostra sua preocupação com a morte, mas não a coloca como centro de sua poética, talvez porque entenda que “O aprendizado da morte é a existência /.../ (e) o sentido da vida é a suspeita de que a morte é a simetria de (sua) liberdade” (“Poética” p.68). É ainda o amor o seu estro, uma vez mais e sempre, celebrado de forma silenciosa, platônica:

As horas,
um amontoado de saudades,
minha idéia a encontrar-te
é como uma voz interior a ter-te.

Mas é irreal,
e o meu sonho, um sonho,
fundido com a minha angústia
como uma tarde sem horizontes.

Esse amor-falta, em outros versos, adquire carnação e torna-se erótico, até dionisíaco. Em “Banquete” (p.45), poema demais sensorial, há um rito na consumação do amor:

Entre ostras e pêssegos eu bailo
e bêbado
beijo o frutal de tuas algas.
entre aspargos e vinhos
advinho o apelo de teus lábios.
/.../
E te possuo entre ostras e aspargos.
Entre vinhos e pêssegos eu te consumo
e te presumo mar absoluto e furioso.

Igualmente ocorre em “Frutos” (p. 81), poema sensual e bastante sugestivo:

A carne é fraca
e os frutos
maduros
são ditosos.
Apetitosos
os seios de Aline
na varanda
e as rosas brancas
no corpo de Marcela.

O amor-erótico se espraia em forma de desejo, no poema “Concha” (p.28): “Quero a louca / lâmina / da minha fantasia/ pastando no teu sexo” e se plenifica em “Casulo” (p.52), a mais bela peça romântica do livro:

Te amo sobretudo os lábios
e a resina viscosa dos teus seios,
pois a vulva dos teus olhos enlaça
a sedução invisível dos meus pelos,
onde começo a viver e me embaraço,
porque me mato de amor quando te vejo.

Já em “Ausência” (p. 69), o poeta recusa o amor-sofrimento e celebra o amor-vida, confirmando a doação plena e o desejo de felicidade:


Não. Eu não me quero o suicida
que despenca do alto da torre.
Eu me quero vida para te ofertar rosas
e te colher a plenitude de espigas maduras.

Dimas tem a poesia como o sentido de sua vida, a poesia visceral e sangüínea, costurada com a alma. Evocando a infância ou suas raízes, procurando a lógica da vida ou indagando sobre os enigmas que a cerceiam, refletindo sobre o processo criador ou reinventando-se na ‘tessitura do caos’, lembrando a morte ou celebrando o amor, ele sintetiza seu percurso poético no trajeto de seus 25 anos de poesia, reafirmando seu talento para as letras e fazendo o coroamento de sua maturidade estética e ontológica. Resta-nos a pergunta: se Sintaxe do desejo fecha um ciclo existencial, o que virá agora? Conhecendo o poeta, arrisco uma resposta: a reinvenção (inclusive do novo), porque ele sabe, como Cecília Meireles, que “a vida, a vida, a vida... só é possível reinventada ”. Também a poesia!